Capítulo 12: Dívida

Quando eu ainda era garotinho e usava avental infantil ia à escola de uma senhora, eu queria um lápis e tinha o dinheiro para comprar um, mas tinha medo que chamassem minha atenção porque sempre perdia meus lápis, pois era um moleque muito pobre e não me atrevia a perguntar o que o João devia fazer. Havia uma pequena loja em que a velha senhora Dearson vendia nozes, piões, bolos, bolas; e eu vi, algumas vezes, meninos e meninas comprando fiado da velha senhora. Pensei comigo mesmo que o Natal estava chegando, e que, com certeza, alguém me daria uma moeda e, quem sabe, até mesmo uma moeda de prata mais valiosa. Assim, eu podia comprar fiado um lápis, pois tinha certeza de poder pagar no Natal. Eu não me sentia tranqüilo com aquilo, mas instiguei minha coragem e fui à loja, o lápis custava cinqüenta centavos, mas como nunca ficara devendo nada antes meu crédito era bom, e gentil senhora deu-me o lápis fiado, agora eu tinha uma dívida. Aquilo não me agradava muito, e sentia-me como se tivesse feito alguma coisa errada, mas eu nem imaginei como logo eu sofreria com isso. Eu nunca soube como meu pai ficou sabendo dessa pequena façanha comercial, mas algum passarinho assoprou para ele, e ele ficou muito bravo comigo e de um modo muito sério. Deus o abençoe por aquela reação. Ele era um homem sensato, e não uma pessoa que mima crianças; ele não queria que seus filhos especulassem e brincassem com aquilo que os grandes enganadores chamam de financiamento; por isso, ele acabou de vez, sem rodeios, com minha entrada no mundo da dívida. Ele me deu uma séria preleção sobre contrair dívida, fato tão sério como roubar, sobre a forma pela qual as pessoas se arruinavam por isso, e sobre como um menino que devia cinqüenta centavos, poderia um dia dever cem reais, ser preso, e levar sua família à desgraça. Foi realmente uma preleção, parece que estou o ouço agora e posso sentir minhas orelhas tinindo com a recordação dela. A seguir, eu fui posto em marcha de volta à loja, como o desertor que marcha de volta ao quartel, chorando amargamente por toda a rua e sentindo-me terrivelmente envergonhado porque pensava que todo mundo sabia que eu devia. Os cinqüenta centavos foram pagos, entre muitas advertências solenes, e o pobre devedor foi liberado como um passarinho que saiu da gaiola. Como era sublime estar fora da dívida! Como meu pobre coração jurou e prometeu que nada jamais me tentaria a entrar em débito de novo! Foi uma excelente lição, e eu nunca a esqueci. Se todos os jovens fossem vacinados com a mesma doutrina, quando bem novos seria tão bom para eles como ganhar uma fortuna e, mais tarde, evitaria um trem de dificuldades na vida deles. Deus abençoe meu pai e envie esse tipo de pai para a velha Inglaterra a fim de evitar que ela seja engolida pela vilania —, pois as empresas, os esquemas e o papel moeda estão deixando a nação tão estragada como madeira podre.


Desde esse antigo e desagradável episódio, eu passei a odiar a dívida, como Lutero odiava o Papa, e não se admirem se eu disser algumas coisas ferinas a respeito disso. Meu maior desejo tem sido manter a dívida, a sujeira e o diabo fora da minha casa desde que assumi a administração da casa. Apesar de que o terceiro entra, às vezes, pela porta ou pela janela –, pois a velha serpente passa pela menor fresta – já os outros dois, graças a uma boa esposa, trabalho duro, honestidade e esfregões, não passam da soleira da porta. A dívida é tão degradante que se eu devesse uma moeda a alguém andaria uns trinta quilômetros no período mais frio do inverno para pagá-lo, antes de sentir-me endividado. Eu ficaria mais confortável com ervilhas nos sapatos, ou com um ouriço em minha cama, ou ainda com uma cobra nas minhas costas do que com contas da mercearia, da padaria e da alfaiataria pairando sobre minha cabeça. A pobreza é difícil, mas a dívida é horrível; é melhor um homem ter uma casa enfumaçada e uma esposa resmungona, considerados os dois piores males da vida, do que ter dívidas. Podemos ser pobres, mas respeitáveis, o que João Lavrador e sua esposa esperam ser e serão, mas um homem endividado não consegue nem mesmo respeitar a si mesmo, e, com certeza, os vizinhos falam dele, e não a seu favor. Algumas pessoas dão a impressão de gostar de dever dinheiro; eu preferia antes ser um gato no alto de uma chaminé com o fogo aceso, ou uma raposa com uma matilha no meu calcanhar, ou um ouriço em um forcado, ou ainda um rato na garra de uma coruja. O homem honesto acha que uma bolsa cheia com o dinheiro dos outros é pior que uma bolsa vazia. Ele não agüenta comer o queijo de outra pessoa; usar as camisas de outras pessoas e caminhar com os sapatos de outras pessoas, tampouco será fácil para ele se sua esposa estiver enfeitada com chapéu de modista e vestir roupas de costureira. Logo depenaram a gralha que usava as plumas do pavão, e os que pegam emprestado, com certeza, chegarão à pobreza, e a espécie mais amarga de pobreza, pois há vergonha nela.


Viver além da própria receita é a ruína de muitos de meus vizinhos; eles têm dificuldade em conseguir recursos para manter um coelho, mas montam em um pônei e dirigem carruagem. Receio que a extravagância seja a doença mais comum de hoje, muitos cristãos confessos, para sua vergonha e tristeza, a contraíram. Algodão de boa qualidade ou vestidos de lã não são suficientes, as meninas precisam usar seda e cetim, além disso, há a conta da costureira, tão longa e escura quanto uma noite de inverno. A exibição, o estilo e a inteligência acabam com os recursos do homem, mantêm a família pobre e forçam os pais a trabalharem arduamente. Os sapos tentam parecer grandes como os touros e se arrebentam. Os macacos que pesam meio quilo em uma semana e setenta e cinco quilos em um ano acabam no tribunal do condado. Os homens queimam a vela dos dois lados e depois dizem que não têm muita sorte; porque não dão nome aos bois e admitem que são extravagantes? A economia é meia batalha ganha na vida, mas não é tão difícil ganhar dinheiro quanto é gastá-lo bem. Centenas de pessoas jamais teriam aprendido a querer se antes não tivessem aprendido a gastar. Se todas as esposas de homens pobres soubessem como cozinhar, até onde algumas delas chegariam? Nosso ministro diz que os franceses e os alemães bateram-nos para valer com arte culinária boa e barata. Eu gostaria que eles enviassem missionários para converter as mulheres bisbilhoteiras em ótimas gerentes; essa é uma moda francesa que seria bem mais útil que as belas decorações na vitrina da senhora Fripper que exibem senhoras vestidas com uma moda nova todo mês. Puxa vida! Algumas pessoas hoje são muito refinadas para comer o que seus pais ficavam agradecidos apenas em ver sobre a mesa e, por isso, só contentam seu paladar com alimentos caros, acabam no asilo e esperam que todo mundo tenha pena delas. Viram o nariz para o pão com manteiga e terminam comendo nabos crus, roubados nos campos. Os que gostam de participar de brigas de galo à custa dos outros, um dia desses, terão suas cristas cortadas ou talvez assadas. Se você tem um grande suprimento de ervilhas pode por mais na sopa, mas todo mundo deve se alimentar de acordo com seus ganhos. O que tem uma moeda em haver e, por isso, gasta cem reais que não lhe pertencem é, ao mesmo tempo, tolo e tratante. Este é um bom conselho: corte seu paletó de acordo com o tecido, mas cortar o tecido de outras pessoas e endividar-se é como roubar ou dizer que um sofá é uma carruagem. Se eu pretendo ser um tratante devo negociar nos armazéns da marinha, ou ser um advogado insignificante e confuso, ou um padre, ou abrir um escritório de empréstimos, ou sair batendo carteiras, mas eu desprezo a arte suja de fazer dívida sem condição para pagá-la.


Os devedores não ajudam quando mentem porque prometem pagar, mas sabem que não podem fazê-lo e, depois de dar um monte de falsas desculpas, eles prometem de novo; portanto, eles mentem com a mesma rapidez com que o cavalo trota.


Você tem dívidas e faz mais dívidas,
Se ainda não mentiu, mentirá.

 

Mas se a dívida leva-o a mentir, quem pode dizer que isso não é ainda pior? Sem dúvida há exceções, e eu não quero criticar duramente um homem honesto que foi derrubado pela doença ou por grandes perdas. Mas se entender a lei como lei, você vê que a dívida é um pântano grande e sombrio, um imenso buraco de lama, um prato sujo; feliz é o homem que consegue sair dela depois de quase cair nela, porém, mais feliz de todos é aquele que pela bondade de Deus ficou completamente fora da mira dela. Se você convida o diabo para jantar é difícil tirá-lo de casa depois; é melhor não ter nada com ele. É muito provável que a galinha ponha ovo no local em que já botou um; quando um homem faz dívida uma vez, é provável que faça de novo; é melhor ficar livre dela desde o início. O que a faz por uma moeda, logo faz por muito mais, e quando um homem está acima de suas posses, ele está sujeito a fica muito mais acima ainda. Se você não dever nem uma moeda, não deverá grandes valores.


Se você quer dormir bem, compre a cama de um homem que tem dívidas; certamente ela é muito macia, pois ele nunca conseguiu descansar muito nela. Creio que as pessoas ficam calejadas com isso, como o burro que o Smith tinha quando seu dono quebrou muitos galhos em pedaços sobre suas costas. Tenho a impressão que um homem realmente honesto prefere ficar tão curvado como um galgo que festejar com dinheiro emprestado ou, ainda, ficar com a garganta seca de pó antes de permitir que o estalajadeiro faça marcas de giz atrás da porta para marcar sua dívida com a cerveja. Que alfinetes e agulhas as contas dos homens de negócio devem espetar na alma de um camarada! Um porco com crédito sempre grunhe. Sem dívida, sem preocupação; fora da dívida, fora de perigo. Dever e tomar emprestado são arbustos espinhosos. Se eu pegar emprestada a pá do meu vizinho do lado não me sentirei seguro com ela por medo de quebrá-la; nunca cavarei em paz como faço com a minha. Se tivesse uma pá na loja e soubesse que não poderia pagar por ela, acho que começaria a cavar minha própria sepultura por causa da vergonha que sentiria. As Escrituras dizem: "Não devam nada a ninguém", o que não quer dizer pague suas dívidas, mas sim, nunca tenha nada a pagar. Minha opinião é que os que quebram essa lei por teimosia devem ser retirados sumariamente da igreja cristã, nossas leis estão vergonhosamente cheias de encorajamento ao crédito, agora ninguém precisa ser ladrão. Um homem só precisa abrir uma loja e fracassar e recebe muito mais; conforme diz o ditado: "Quem não arrisca, não petisca". Eu conheço homens de negócio que falharam cinco ou seis vezes e, os salafrários, ainda acham que estão a caminho do céu, o que fariam se chegassem lá? Eles estão muito mais perto de chegarem ao lugar de onde nunca sairão até que tenham pago o último centavo que devem. Mas as pessoas dizem: "Como eles são liberais", são sim, com o dinheiro dos outros. Odeio ver um homem roubar um ganso e, depois, dar os miúdos para a religião. Sem dúvida, devemos ter piedade, mas o pagamento de sua dívida faz parte da piedade. A honestidade vem antes da generosidade. No entanto, com que freqüência a religião ser de capa para o engano! Temos a senhora Scamp, elegante como um pavão, todas as meninas do internato aprendem francês e a tocar piano, os meninos arrogantes com luvas, e o ilustríssimo sr. G. B. Scamp cavalga uma égua de trote rápido e comparece às reuniões públicas, enquanto seus pobres credores não conseguem mais que o suficiente para viver de expedientes. É vergonhoso e insuportável ver como muitos neste país fazem de conta que não vêm a trapaça elegante. Eu acabaria com seus coletes brancos, luvas infantis e botas de couro de marca, se pudesse dar a eles a colheita do condado e o uniforme da prisão por seis meses; pessoas de posição social ou não, eu os faria ver que grandes tratantes também dançam na roda do moinho no mesmo ritmo que os pequenos. Se eu fosse membro do Parlamento, ou primeiro ministro tornaria a terra um lugar muito quente para essa gente patife agüentar , como não tenho tal poder, pelo menos, posso escrever contra essas pessoas e liberar a força da minha indignação nelas.


Meu lema é: "pagar conforme caminha e livrar-se dos pontos insignificantes". Pequenas contas são logo esclarecidas. Pague o que deve, e você sabe quanto vale. Deixe o relógio trabalhar desde que não me deixe confuso. É melhor ir para a cama sem jantar que fazer dívida. Sempre temos mais pecados e dívidas do que imaginamos. Pouco a pouco o homem se enterra nela. São os gastos insignificantes que esvaziam a bolsa. O dinheiro é redondo e sai com facilidade. Tom Thriftless compra o que compra, não o que quer, apenas porque é uma boa pechincha e, assim, logo tem de vender o que quer e descobre que é uma pechincha insignificante. Ele não consegue dizer não para o amigo que quer negociar com ele por segurança; ele dá grandes jantares, tira muitos dias de folga, mantém uma mesa farta, permite que a esposa se vista bem, nunca fica atrás dos empregados e, depois, fica totalmente surpreso ao descobrir que, no final, o quarteirão logo se transforma em um círculo, e que os credores gritam muito alto. Ele semeou seu dinheiro nos campos da negligência e se espanta de colher pobreza. Ele ainda espera que aconteça alguma coisa para ajudá-lo a sair da dificuldade e, dessa forma, se confunde com mais problemas, esquecendo que a esperança e a expectativa são o pagamento dos tolos. Como está em dificuldade, ele vai ao mercado com os bolsos vazios e compra ao preço que o comerciante quiser cobrar dele e, assim, paga mais que o dobro e afunda mais na lama. Isso o leva a maquinar e tentar pequenas trapaças e truques porque é difícil um saco vazio parar em pé. Com certeza, essa não é a resposta, porque trapaças são como teias de aranhas, nunca apanham nada melhor do que moscas e logo desaparecem. Da mesma forma, você poderia tentar emendar seus sapatos com papel marrom, ou fazer uma janela quebrada parar de bater com uma lâmina de gelo, ou ainda tentar consertar um negócio fracassado com manobras e maquinações. O manipulador desmascarado é como o cachorro que aparece na igreja e todo mundo chuta ou como o barril de pólvora que ninguém quer ter por perto.


Dizem que a pobreza é um sexto sentido, e deveria ser, pois parece que muitos devedores perdem os outros cinco ou nasceram sem bom senso porque parecem imaginar que não apenas se faz dívidas, mas paga-as também com empréstimo. Um homem paga a Pedro o que emprestou de Paulo e pensa que está saindo de suas dificuldades, quando está apenas pondo um pé na lama para tirar o outro dela. É difícil barbear um ovo ou arrancar cabelos de uma cabeça careca, mas ambas as coisas são mais fáceis de fazer do que pagar dívidas com o bolso vazio. Sansão era um homem forte, mas não conseguiria pagar dívidas sem dinheiro. Quem pensa que pode fazer isso com manipulação é um tolo. Da mesma forma, emprestar dinheiro de agiotas é o mesmo que o homem que está se afogando se agarrar a navalhas; tanto os judeus como os gentios, quando emprestam dinheiro, geralmente depenam os gansos enquanto têm penas. Se quiser se reabilitar, o homem precisa cortar suas despesas e economizar suas receitas; você não pode gastar seu dinheiro e também pagar suas dívidas com ele. Abstenha-se de frango se a bolsa estiver vazia. Não acredite em nenhuma forma de enxugar dívidas, a não ser pagando-as com dinheiro suado. Promessas fazem dívidas, e dívidas fazem promessas, mas as promessas nunca pagam as dívidas. Prometer é uma coisa, conseguir realizar é outra bem diferente. A palavra de um homem de bem deveria ter o valor de um juramento, e ninguém deveria prometer pagar, a não ser que tivesse um projeto claro para fazer isso no tempo devido. Os que adiam o pagamento com falsas promessas não merecem perdão. É muito fácil dizer: "Sinto muito", mas:


Cem anos de remorso
não pagam um centavo de dívida.

 

Tenho receio de que todos esses sólidos conselhos também poderiam ter sido dados para as galinhas e galos do meu senhor, da mesma forma que se tivessem sido dados para os que caíram no hábito de gastar o que não lhes pertence, pois conselhos para esse tipo de pessoas entram por um ouvido e saem pelo outro. Bem, os que não quiserem ouvir terão de sentir, e os que recusam conselhos baratos terão de pagar caro pelo arrependimento; mas para os jovens que estão começando a viver, uma palavra poderá valer mais que o mundo, e este é o pequeno sermão de João Lavrador, com três pontos importantes: viva sempre um pouco abaixo dos seus recursos, nunca contraia dívidas e lembre-se que:


Quem faz um empréstimo,
Arruma uma dor de cabeça.