Capítulo 2: Os mistificadores da religião

Quando o homem tem a cabeça peculiarmente vazia, em geral, tem a presunção de ser um grande juiz, em especial, em relação à religião. Ninguém é tão sábio quanto o homem que não sabe nada. A ignorância é a mãe de sua impudência, e, a enfermeira de sua obstinação, aliás ele não distingui o joio do trigo, resolve os assuntos como se a sabedoria estivesse na palma de sua mão. O próprio papa não seria tão infalível. Ouça suas palavras depois de participar de uma reunião ou de ouvir um sermão, e você saberá como reduzir um homem de bem a frangalhos, se já não souber fazer isso. Ele vê imperfeições onde elas não existem; e se encontra qualquer coisa imperfeita faz tempestade em um copo d'água. Apesar de toda sua capacidade caber na casca de um ovo, ele pesa o sermão na balança da própria vaidade, com os ares de um bem nascido e criado Salomão. Se o sermão estiver acima do seu padrão, ele exagera nos elogios, mas se não for do seu gosto, ele resmunga, fala rispidamente e ladra como um cão diante de um porco espinho. Neste mundo, homens sábios são como árvores em um cercado, encontramos apenas um aqui, outro ali. Quando esses homens raros falam juntos sobre um discurso, ouvi-los faz bem aos ouvidos; mas os sabichões convencidos dos quais estou falando, ficam estufados de vaidade por causa de sua forma de pensar materialista, e suas palavras são tão sem sentido quanto o grasnar dos gansos no campo. Nada sai de um saco, a não ser o que estava dentro dele, e como a mala deles está vazia não tiram nada dela, a não ser vento. É muito natural que nem os pastores nem os sermões sejam perfeitos – o melhor dos jardins pode ter algumas ervas daninhas, o milho mais limpo pode ter alguma palha –, mas esses cavalheiros fazem críticas e encontram imperfeições em tudo e em nada, com o intuito de mostrar seu profundo conhecimento. Tão logo dão folga para suas línguas, começam a criticar que o capim não tem um tom de verde agradável ou que o céu ficaria mais nítido se fosse caiado.


Um grupo de ismaelitas foi forjado por esses ambiciosos ignorantes, poderosos no conhecimento da doutrina contida em um sermão, nisso são incisivos como marretas e infalíveis como a morte. Quem não sabe nada, presume que sabe tudo; por isso, eles são de uma teimosia sem limites. Todos os relógios, até mesmo os solares, têm de ser acertados com os deles. A menor divergência com sua opinião faz com que o homem se sinta aniquilado até o fundo do coração. Aventure-se a argumentar com eles, e o ínfimo conhecimento dele extravasa rapidamente; perguntar a eles a razão de alguma coisa é a mesma coisa que procurar açúcar enterrado na areia. Eles engarrafaram o mar da verdade e o carregam nos bolsos de seus coletes; mediram a linha da graça divina e deram um nó no barbante no comprimento exato do amor dos eleitos de Deus. As coisas que os anjos custam a conhecer, eles já as conhecem todas, como as crianças que vêm coisas incomuns nos caleidoscópios. Tendo vendido sua modéstia e se tornado mais sábios que seus mestres, eles montam em um cavalo muito alto e passam por cima dos cinco portões trancados dos textos bíblicos, que ensinam doutrinas que contrariam suas idéias absurdas. Quando isso acontece a homens de bem, é muito triste ver esses potes de ungüento perfumado deteriorados pelas moscas, porém aprendemos a lidar com eles, assim como faço com a velha Violeta, uma égua excepcional, mas que, às vezes, põe as orelhas para trás e empaca. Mas há bastante arrogância nos que são apenas ferrão, sem mel; apenas chicote, sem feno; apenas grunhidos, sem bacon; nos que, da manhã à noite, não fazem nada além de injuriar, em todos que não agüentam ver seus espetáculos até o fim. Seria mais suportável se eles, ao menos, misturassem um pouco de bem viver a todo esse orgulho, mas não, eles não se preocupam com essa verdade. Não se pode esperar que homens tão perfeitos como eles sejam bons em alguma outra coisa; eles são os cães de guarda divinos que protegem a casa de Deus contra os ladrões e assaltantes que não pregam doutrina sadia; e se eles fossem causa de aflição para as ovelhas ou furtassem um ou dois coelhos às escondidas, quem os culparia? O povo querido de Deus, como eles mesmos se intitulam, já tem de fazer muito para manter sua doutrina audível; e quem se preocupa se os métodos não são perfeitos! Ninguém pode cuidar de tudo ao mesmo tempo. Eles são as toupeiras que buscam caça em nossos pastos, não para si mesmos, pois não há nada aproveitável lá para eles, mas sim para os prados que corrompem. Eu não encontraria nem mesmo a metade de um erro na doutrina deles, se não fosse direcionada para os seus espíritos; mas, se comparados a ela, o vinagre é doce, e os lobos parecem ovelhas. É uma doutrina tão elevada que está muito acima de minha capacidade, porém, preciso ter muita experiência e muita prática ao lidar com ela ou embrulhará meu estômago. Por outro lado, eu disse o que tinha para dizer, preciso abandonar o assunto, ou alguém perguntará o que tenho que ver com o moinho de vento de Dom Quixote?


Às vezes, repreendem o pregador por seu modo de falar. Mais uma vez, esse é um campo fácil de se encontrar imperfeições, pois todo monte de feijão sempre tem um escuro, e todo homem tem suas falhas. Nunca conheci um bom cavalo que não tivesse algum hábito estranho ou outro defeito, e nunca vi um pastor de mérito não usar algum artifício ou singularidade, assim, esses são os bocados de queijo que os mistificadores descobriram e censuram, esse homem é muito vagaroso, e o outro, muito rápido; o primeiro é muito poético, e o segundo, muito maçante. Seria uma tristeza, se todas as criaturas de Deus fossem julgadas desse jeito, nós precisaríamos apertar o pescoço da pomba para domesticá-la; atirar nos tordos por comerem aranhas; matar as vacas por balançarem as caudas; e as galinhas por não nos fornecerem leite. Quando um homem tirar um obstáculo, ele logo consegue um pedaço de madeira; da mesma forma, qualquer tolo tem algo a dizer contra o melhor pastor da Inglaterra. Do mesmo modo, se a forma de pregar é constituída apenas de palavras simples e séria, ninguém pode fazer objeção a ela – por lhe faltar polimento se o conteúdo é bom –, ela não pode soar imprópria. Ninguém deveria usar linguagem prolixa no púlpito – e pode-se considerar toda linguagem negativa se as pessoas simples não conseguem entendê-la, mas as palavras religiosas, sóbrias, decentes e simples ninguém pode criticar. O homem do campo fica tão aquecido com chita, quanto um rei com veludo, e uma verdade é tão confortadora em palavras simples quanto em um discurso refinado. Cada um no seu lugar; quando estão com fome, os homens deixam a cozinheira preparar a carne, pois ela a deixa mais tenra e substanciosa. Se os ouvintes fossem melhores, os sermões também seriam. Quando os homens dizem que não podem ouvir, eu recomendo que comprem um captador de som e lembrem do velho ditado: "O pior surdo é quem não quer ouvir".Quando jovens pregadores ficam desanimados, devido às observações duras e indelicadas, em geral, conto-lhes a história do velho, do menino e do burro e o que aconteceu com a tentativa de agradar a todos. Nenhum tocador de flauta jamais conseguiu agradar a todos os ouvintes. Quando se põe o capricho e a fantasia no lugar do julgamento, a opinião de um homem não passa de vento, por isso, ninguém se preocupa com isso mais que com o vento que assobia pelo buraco da fechadura.


Já ouvi falar de pessoas que conseguiram encontrar erros em coisas que nem faziam parte do discurso. Não importa quão bem se trouxe o assunto à tona, havia outro assunto sobre o qual nada foi dito e, portanto, tudo estava errado. Isso é tão justo quanto encontrar defeito em meu arado porque não cava buracos para os feijões ou estragar um bom campo de milho porque não há nabos nele. Quem procura por cada uma das verdades de um sermão? Da mesma forma, vocês poderiam reclamar de um prato com um pedaço de carne porque não tem bacon, ou vitela, ou ervilhas verdes. Suponhamos que um sermão não conforte completamente os mais religiosos; mas, se por outro lado, ele advertir os pecadores, será que devemos desprezá-lo? Um serrote não seria uma ferramenta adequada para alguém se barbear; mas só por isso devemos jogá-lo fora? Qual a utilidade de se tentar constantemente descobrir imperfeições? Detesto ver um homem que tem sensibilidade para perceber as coisas passíveis de queixa, como um cão que caça ratos farejando suas tocas. De qualquer maneira, desbastemos o erro, as raízes e os galhos, mas conservemos nossas tesouras de podar enquanto houver arbustos espinhosos a desbastar e não caiamos na desventura da piedade por nós mesmos. Julgar pregadores não é um negócio rendoso, pois não vale a pena. Ao julgar o sermão, eles dão o prêmio para o melhor entre nós; mas esses juizes de pregadores são muito lentos para dar alguma coisa, mesmo para aqueles em quem confessam pensar muito. Eles pagam com elogios, mas não dão o prêmio. Eles usam o evangelho para qualquer coisa e acham que fizeram um grande favor quando o reverenciam, e não o censuram.


Todos se consideram bons juízes de sermões, mas nove entre dez deles têm a pretensão de poder pesar a lua. Pensando bem, creio que a maioria das pessoas pensa que pregar é uma coisa extremamente fácil e que poderia fazer isso maravilhosamente bem. Todo estúpido se acha útil para cuidar dos cavalos do rei; toda menina pensa que poderia cuidar da casa melhor que sua mãe. Mas pensamentos não são fatos; o pescador sabia mais do que a sardinha que pensava ser um arenque. Eu ouso dizer essas coisas, os que assobiam imaginam que podem arar, mas há mais que um assobio em um bom lavrador. E deixem que eu diga, há mais em uma boa pregação do que pegar um texto e dizer: em primeiro lugar, em segundo lugar, em terceiro lugar. Eu mesmo tento pregar, e em meu humilde modo de pensar, não acho nada fácil dizer ao povo alguma coisa que valha a pena ser ouvida. Se a fila de críticos, que nos conta nos dedos, também tentasse pregar, com certeza, ficariam mais calados. Os cães, entretanto, latem sempre e o pior é que também mordem; mas deixem que as pessoas decentes façam tudo o que podem ou amordace-as para evitar, desde já, que causem muito dano. É terrível ver uma família feliz de cristãos dissolvida por faladores, descobridores de imperfeições, e tudo por nada, menos que nada. A extremidade da cunha é pequena, mas quando o diabo manipula o macete, as igrejas se separam em grupos, e os homens se perguntam por que isso ocorreu. O fato é que a roda defeituosa da carroça chia mais, e um tolo transforma muitos em tolos, assim como a maioria das congregações teria vantagem com um pastor fiel, que poderia ser sua última benção, se não tivesse afugentado seu melhor amigo. Em geral, os que estão voltados para a injúria não participam realmente da verdadeira religiosidade; mas são como os pardais que lutam pelo milho alheio, e como as gralhas despedaçam aquilo que nunca ajudaram a construir. Que possamos nos livrar dos cachorros loucos e dos professores mistificadores e que não tenhamos de suportar a queixa de nenhum deles. Encontrar imperfeições é terrivelmente contagioso, um cão contagia todo o canil quando uiva, o procedimento mais sábio é manter fora do caminho quem tem a doença da mistificação. O pior disso é que as doenças dos pés e da cabeça caminham juntas, e aquele que calunia os outros, rola na lama bem antes dos que ele calunia. "O fruto do Espírito é amor", essa é uma maçã muito diferente da azeda maçã siberiana que algumas pessoas trazem para cá. Adeus a todos vocês filhos queixosos, seria mais fácil João Lavrador roer um osso em paz que lutar por um boi assado.