Capítulo 18
A CONSIDERAÇÃO COMO INSTRUMENTO DESSA RESPONSABILIDADE; E QUE FORÇA ELA TEM PARA MOVER A ALMA
Após mostrar a você como deve realizar essa responsabilidade, começo, agora, a direcioná-lo para a responsabilidade em si a fim de indicar-lhe que caminho deve pegar para realizá-la. Tudo que disse foi apenas para afinar o instrumento, o coração, e, agora, passamos para a música em si. [...]
O grande instrumento para a realização dessa responsabilidade é o raciocínio, arrazoando o caso consigo mesmo, o discurso da mente, ou o pensamento; ou, se preferir, chame-a de consideração. [...] A alma do homem, à medida que ela recebe e retém as idéias, ou dá forma às coisas, tem também o poder de escolher qualquer uma dessas idéias ali depositadas, suscitá-la e, vez após vez, agir nela. [...] Este é o poder que você precisa usar aqui: para a escolha das idéias ou dos assuntos para sua cogitação é forçoso que haja o ato da vontade, algo que deve acompanhar a responsabilidade do início ao fim; pois essa deve ser uma cogitação voluntária, não forçada. [...]
A seguir, veremos a força que a consideração tem para mover os sentimentos e para gravar coisas poderosas no coração. Primeiro, a consideração, por assim dizer, abre a porta existente entre a mente e o coração; a compreensão, ao receber as verdades, as armazena na memória; bem, a consideração é o que as converte para os sentimentos; há alguns poucos homens cuja compreensão, ou memória, é muito fraca, mas, mesmo assim, eles têm conhecimento e podem se lembrar daquilo que, de modo singular, trabalha neles e faz grandes alterações em seu espírito, se as informações não estivessem enclausuradas em sua mente, e se eles pudessem transportá-las para seu coração: bem, essa é a grande responsabilidade da consideração. Ó que homens raros seriam aqueles que têm mente firme, bem como muito conhecimento e cultura, se apenas as obstruções existentes entre a mente e o coração fossem abertas, e seus sentimentos correspondessem à compreensão. [...] O melhor erudito é o que tem a passagem entre o ouvido e a mente mais disponível e mais disposta, mas o melhor cristão é o que tem a passagem da mente para o coração mais disponível e mais disposta; bem, consideração é aquilo que, por nossa atuação, abre essa passagem, embora o Espírito seja a principal causa dessa abertura. [...]
Questões de grande peso, as quais nos dizem mais respeito, são as mais aptas a trabalhar de forma mais eficaz no coração. Bem, a meditação apresenta esses objetos nos quais devemos trabalhar e os apresenta aos sentimentos de acordo com o peso e o valor que têm. O objeto mais agradável não agrada àquele que não o vê; nem as notícias mais alegres afetam aquele que não as ouve. Bem, a consideração apresenta diante de nós aqueles objetos que pareciam estar ausentes e os trazem à vista do olho e do ouvido da alma. Cristo e a glória não são objetos que nos afetam? Eles não fariam maravilhas na alma se fossem claramente descobertos, e também não nos transportariam de forma singular, se nossa compreensão respondesse apenas um bocadinho a seu valor? Eles são apresentados a nós pela consideração: esse é o espelho em perspectiva, e muito aguardado, do cristão, pois através dele ele pode ver o céu a partir da terra.
À medida que a consideração traz à luz objetos de mais peso, ela também os apresenta de uma forma mais comovente e afetuosa e os pressiona a ir para casa com argumentos mais convincentes e fortes. O homem é uma criatura racional e apta a mover-se de uma forma racional, especialmente quando os raciocínios são evidentes e fortes. Bem, a consideração é o raciocínio do caso com o coração, e uma grande quantidade de raciocínios, tanto claros quanto de peso, está sempre à mão para que trabalhem no coração! Quantos argumentos se oferecem a si mesmos para essa responsabilidade! [...] Meditação é a mão que apresenta todos eles; e acontece algo similar a quando você pesa algo na balança: você pesa e, depois, põe um tanto a mais, e um pouquinho mais, até que alcance o peso exato que você quer; seus sentimentos ficam ali em insípida indiferença, e a meditação apresenta o argumento racional, um após o outro, até que a balança acaba por mudar de posição. Ou, acontece algo similar a quando está comprando alguma coisa que necessita para seu uso pessoal, pois você barganha um pouco mais, e mais um pouquinho, até que chegue ao preço que o vendedor aceite; e a meditação o persuade a alegrar-se ao apresentar-lhe primeiro um raciocínio, e depois outro, até que todas suas dúvidas e seus sofrimentos sejam silenciados, e a razão para você alegrar-se fica ali bem diante de você. [...] A meditação nada mais é que a leitura das razões de Deus para nosso coração e o compartilhamento delas com o centro de nossas emoções. E não é provável, portanto, que esse seja o modo predominante? [...] E eles todos devem ser postos em ação pela consideração.
A meditação põe a razão na área em que esta é autoridade e superior. A meditação ajuda a libertar a razão para os sentimentos e os coloca novamente no trono da alma. Quando a razão silencia, ela usualmente está subjugada, pois quando ela adormece, os sentidos dominam. Bem, a consideração desperta nossa razão de seu sono, até que ela mesma se levante, como Sansão, e quebre as amarras da sensualidade por meio da qual ela é acorrentada; e, assim, como o gigante que se revigorou, ela derrota as ilusões da carne que estão defronte dela. [...] A razão espiritual é estimulada pela meditação, e não pelo sentido carnal nem pela fantasia, os quais devem saborear e avaliar essas alegrias superiores. A consideração exalta os objetos da fé e discorda, por meio da comparação, dos objetos do sentido. [...]
A meditação também põe a razão para atuar com todas suas forças. A razão é mais forte quando está em ação. Bem, a meditação transforma a razão em ação. Antes ela não passava de água parada, ou seja, que não pode mover nada mais se ela mesma não for movida; mas, agora, ela é como o rio que corre rapidamente e carrega tudo que está em seu caminho. Antes ela não passava de ar parado e silencioso; mas, agora, ela é como a poderosa força motriz do vento, derrubando a oposição da carne e do demônio. Antes era como as pedras que ficam paradas no riacho; mas, agora, quando a meditação a põe em moção, é como a pedra na atiradeira de Davi que derruba o Golias de nossa descrença com uma pedra na testa. Assim como os homens perversos continuam perversos, não por que eles não tenham razão em princípio, mas por que não trazem a razão em ação nem a põem em uso, também os homens piedosos sentem-se desconfortáveis e ficam tristes, não por que não tenham motivos para regozijar, nem por que não tenham razão para discernir essas causas, mas por que eles permitem que sua razão e sua fé adormeçam e não trabalham para as por em ação, nem as estimulam a entrar em ação por meio dessa responsabilidade da meditação. [...]
A meditação pode descontinuar esse emprego discursivo. Isso pode ser conseguido por uma moção mais fraca e contínua que, na primeira tentativa, não resultará em um movimento mais forte. O emplastro que não é tão eficaz para curar precisa de tempo para causar algum efeito e não pode ser retirado assim que for colocado. Bem, a meditação segura o emplastro na ferida; ela segura a fé e a razão em seu trabalho e sopra a chama até que ela realmente acenda e aqueça todo o ambiente. Correr alguns passos não aquece o homem, mas andar por uma hora pode aquecê-lo. Assim, embora um pensamento repentino e ocasional sobre o céu não fará com que nossos sentimentos se elevem até algum calor espiritual, a meditação pode fazer com que nossos pensamentos prossigam e prolonguem nosso caminhar até que nosso coração se aqueça.
E, assim, você pode perceber que força a meditação, ou a consideração, tem para efetuar essa grande elevação da alma, para qual responsabilidade, conforme já afirmei, ela deve ser o instrumento.