Capítulo 17
QUANTO AO MOMENTO E AO LUGAR MAIS APROPRIADO PARA ESSA CONTEMPLAÇÃO, E A PREPARAÇÃO DO CORAÇÃO PARA ELA
Ainda o aconselho: primeiro, no que diz respeito à hora e à época; segundo, em relação ao lugar; e, terceiro, em relação a sua estrutura de espírito.
I Primeiro, por ora, aconselho você a fazer isso, o máximo possível, de forma bem estabelecida e constante. Reserve uma parte de seu tempo para essa responsabilidade. Não dê ouvidos ao escrúpulo daqueles que consideram uma superstição o estabelecimento do período de meditação. Assim como o trabalhador em sua oficina tem um local estabelecido para cada ferramenta e utensílio, ou, caso contrário, quando os quiser usar terá de procurá-los; também o cristão deve ter um local fixo para cada responsabilidade habitual, ou, caso contrário, quando quiser praticá-las é quase certo que ele, na proporção de dez para um, se esquivará dela. Fixar o período salvaguarda nossas responsabilidades, além de nos defender contra as muitas tentações da omissão. Deus não estabeleceu nada além do dia do Senhor, mas permitiu que nós mesmos fixássemos e estabelecêssemos o período de acordo com nossa condição e possibilidade, caso contrário sua lei seria um fardo ou um laço. Ele deixou-nos regras gerais que, por meio do uso da razão e da prudência cristã, podem ajudar-nos a estabelecer o período mais propício para cada um de nós. [...] Sei que a maioria daqueles que argumentam contra o estabelecimento de um período romperam o laço da responsabilidade e demonstram desgosto mais em relação à ação que ao tempo. [...] Portanto, aconselho você, se assim puder, a permitir que essa responsabilidade tenha um horário fixo e que você seja constante com ela como o é com o ouvir a Palavra e com a oração. No entanto, tenha cuidado na forma como a compreende. Sei que essa não é uma responsabilidade adequada para todas as pessoas. Algumas pessoas não têm controle sobre sua vida e seu tempo e, portanto, não podem fixar o período que dedicarão a ela. Essas pessoas são, em sua maioria, os servos e as crianças de pais pobres e carnais; e outros são tão pobres que as necessidades de sua família lhe impedirão de ter essa liberdade. Não considero que seja o dever dessas pessoas abandonar o trabalho para realizar essa responsabilidade em alguns momentos específicos e predeterminados; não mesmo, e isso se aplica também à oração e às outras adorações necessárias. Não, tal responsabilidade é, em todos os momentos, apenas uma responsabilidade. [...] Acho que essas pessoas devem ser cuidadosas a fim de separar o máximo de tempo possível que puderem e de aproveitar todos os momentos livres que tiverem com as responsabilidades de seu chamado e, especialmente, com a meditação e a oração. Não há inimizade entre a oração e a meditação, ou a oração em Espírito, e as duas podem ser feitas juntas. No entanto, [...] se você não tiver liberdade de escolha, utilize-a de preferência. [...] Se todo trabalho do dia tiver seu momento bem estipulado, então seremos mais práticos, tanto no que diz respeito ao separar algum tempo como na execução da responsabilidade.
Aconselho você também, no que concerne ao período para essa responsabilidade, a estipular o momento para que ela seja feita com assiduidade; não poderia determinar essa assiduidade, pois muitas condições pessoais acabam por interferir nessa determinação. [...] Para aqueles que podem facilmente controlar seu horário, aconselho que seja pelo menos uma vez ao dia. [...] Aqueles que acham que não devem se amarrar a uma série e a uma ordem fixa de responsabilidades, mas que devem apenas orar e meditar quando sentirem que o Espírito os impele a isso, estes caminham em terreno incerto e, definitivamente, não-cristão. Tenho certeza que as Escrituras nos instigam à assiduidade, e a necessidade apóia a voz das Escrituras; e se eu, por meio de nossa própria negligência, ou da resistência do Espírito, descobrir que essa atividade não me empolga nem me estimula, ainda assim não ousaria desobedecer às Escrituras, nem negligenciar as necessidades de minha alma. [...] Nosso apetite não é uma regra segura para garantir os momentos em que me dedico a essa responsabilidade; mas, de modo geral, podemos verdadeiramente ser guiados pela Palavra de Deus, por nossa razão espiritual e nossa experiência, bem como, em particular, por nossa necessidade e conveniência.
Três razões em especial deveriam persuadi-lo à assiduidade des-sa meditação sobre o céu. Como a convivência ocasional de sua alma com o Senhor alimenta o distanciamento entre vocês; [...] esta é a finalidade principal de sua responsabilidade: que você possa ter familiaridade e comunhão com Deus por meio dela; portanto, se você a praticar apenas ocasionalmente, continuará sendo um estranho e, desse modo, perderá a finalidade desse trabalho. [...] Além disso, a escassez o torna inábil nesse trabalho e estranho à responsabilidade e a Deus. Como os homens metem mão à obra de forma desajeitada e deselegante em um trabalho com o qual não estão familiarizados! Você, uma vez que a assiduidade habitua seu coração ao trabalho, conhecerá melhor o caminho que percorre diariamente; sim, ele ficará mais fácil e mais agradável também. [...] O coração, que em si mesmo é obtuso, ficará, por meio da falta de assiduidade, cada vez mais indisposto com essa responsabilidade; é como o potrinho não domado, ainda não habituado a obedecer à mão do cavaleiro, e o qual, dificilmente, se habituará a isso, quando você precisar montálo. Por fim, você perderá o calor e a vida, conquistados com muito esforço, por causa desses grandes intervalos. [...] Se você conseguir se aproximar de Cristo na santa meditação e aquecer seu coração com o fogo do amor, você logo retorna a sua antiga frieza, se você rejeitar essa responsabilidade e a praticar apenas ocasionalmente. [...] Esse trabalho é tão espiritual e tão contrário a nossa natureza, por melhor que seja ela, que temos a inclinação de seguir nossa tendência natural, como a água aquecida logo esfria se ficar muito longe do fogo, pois essa é sua tendência natural. [...]
Aconselho você a escolher o período mais apropriado. Todas as coisas são belas e magníficas quando apreciadas em seu momento apropriado. O momento impróprio pode fazer com que você perca o fruto de seu trabalho. [...] O momento particular para realizar suas responsabilidades diárias pode ser particularmente determinado pelo próprio homem; caso contrário, Deus teria determinado isso em sua Palavra. Mas as condições de emprego dos homens, a liberdade e a tendência natural do corpo são tão variadas que um determinado período do dia pode ser apropriado para uma pessoa, mas inapropriado para outra. [...] Todo homem conhece melhor seu tempo, mesmo quando ele tem muitos poucos impedimentos em seu trabalho neste mundo. Mas, para aqueles cujas necessidades não os amarram de forma tão rigorosa, pois podem abandonar seus afazeres terrenos para se dedicar a essa responsabilidade e têm mais liberdade quanto à escolha do período do dia mais conveniente, meu conselho é que eles observem a tendência natural de seu corpo e de sua mente e marquem o momento em que seu corpo e sua mente estiverem mais ativos e propensos à meditação, escolhendoo como o momento estabelecido para isso. [...] Todo homem é o juiz mais apropriado para si mesmo. Apenas permita que apresente a você minha observação quanto ao período que sempre achei mais apropriado para mim: à tardezinha, entre o pôr-do-sol e o crepúsculo; e, algumas vezes, à noite, quando ela está quente e clara. [...]
O dia do Senhor é um momento extremamente propício para esse exercício. Quando podemos contemplar de forma mais apropriada nosso descanso que naquele dia de descanso que tipifica esse descanso para nós? [...] Esse é um dia apropriado para a adoração e as responsabilidades espirituais; assim, acho eu, jamais devemos excluir essa responsabilidade que é tão iminentemente espiritual. [...] Que momento seria mais apropriado para ter convivência com nosso Senhor que o dia que ele separou para isso, o qual, portanto, chama-se de dia do Senhor? Que dia seria mais apropriado para ter convivência com o Senhor que o dia em que nosso Senhor ressuscitou [...] e tomou posse do céu para nós? A tendência natural mais apropriada para o verdadeiro crente é estar no Espírito no dia do Senhor. [...] Gostaria de persuadir os que estão convencidos disso a gastar grande parte desse dia com essa verdadeira espiritualidade. [...] Você vai de degrau em degrau até o topo, então utilize o sabá como degraus para a glória, até que os tenha percorrido todos eles e consiga lá chegar. Especialmente, vocês que são homens pobres, e servos, e não conseguem separar um tempo, como gostariam, durante a semana, procure tirar o melhor proveito possível desse dia. [...] Certifique-se de que, como seu corpo descansa das labutas, seu espírito busque o descanso com Deus.
Para ocasiões extraordinárias, os seguintes momentos são apropriados: quando Deus reaviva de forma extraordinária seu espírito; quando Deus inflama seu espírito com o fogo do alto é o momento em que ele pode elevar-se nas alturas mais livremente. Parte da habilidade de escolha do cristão é observar a tendência de seu espírito e os ventos fortes da graça, bem como o Espírito de Cristo que se move sobre o seu. [...] As pás do moinho não se movem sem o vento; portanto, quando o vento sopra, é preciso deixá-las ir. Certifique-se de que você observa esse vento e essa corrente, para que possa fazer uma viagem mais rápida para o céu. [...] A maioria dos cristãos, algumas vezes, depara-se com uma atividade incomum de reavivamento e de atividade de seu espírito; considere esses momentos como oportunidades enviadas do céu para elevá-lo até lá; e certifique-se de que, quando o Espírito estiver elevando seu coração da terra, você também se eleva até lá. [...]
Quando você for lançado em perturbadores problemas da mente, por meio dos sofrimentos, do medo, dos cuidados ou das tentações, então esse é um momento apropriado para se dedicar a essa responsabilidade. Os momentos em que estamos debilitados não são os mais apropriados para tomar nossos medicamentos? Os momentos em que não sabemos em que canto da terra podemos viver com conforto também não são os mais apropriados para ir até o céu? E os momentos em que não temos mais nada, a não ser a tristeza para conviver conosco aqui embaixo, não são os mais apropriados para que nosso pensamento conviva com o alto? Onde a pomba de Noé deveria estar, senão na arca, quando as águas cobriram a terra e não conseguia achar descanso para seus pés? [...]
Outro momento apropriado para essa responsabilidade divina é quando os mensageiros de Deus nos convocam para a morte. [...] E os momentos em que achamos que esta vida está praticamente no fim não são os que adoçamos com maior freqüência nossa alma com os pensamentos fervorosos na outra vida? [...] Certamente, nenhum homem tem maior necessidade da alegria que lhe dê apoio que o que está à beira da morte; essas alegrias devem ser extraídas de nossa alegria eterna. [...] Como os deleites celestiais são mais doces quando são puros e sem misturas, sem qualquer deleite terreno junto com ele, assim, os deleites do cristão que está à beira da morte são os mais doces que já teve. Portanto, podemos observar, de forma geral, que os santos são mais consagrados quando estão próximos da morte. [...] E os momentos em que o viajante olha para casa com mais alegria não são os em que sua casa já está à vista? [...]
II Agora, falarei sobre o local mais apropriado para essa responsabilidade. Embora a alma fiel possa encontrar a Deus em todos os lugares, ainda assim alguns lugares, para essa responsabilidade, são mais convenientes que outros.
Como essa responsabilidade é particular e espiritual, então é mais conveniente que você se retire para um local particular. [...] Cristo, nessas ocasiões, considerava apropriado ficar isolado. Se na oração em particular devemos fechar a porta, para que possamos orar a nosso Pai a fim de que nos ouça em secreto, o mesmo se exige dessa meditação. Cristo, com freqüência, se afastava para uma montanha, para o deserto ou para algum outro lugar solitário! Para a meditação ocasional, eu não o aconselho a fazer isso; mas, para sua responsabilidade diária bem estabelecida e solene, aconselho-o a retirar-se da companhia de toda e qualquer pessoa, sim, até da companhia de homens piedosos, para que possa desfrutar por algum tempo a companhia de Cristo. Se um aluno não consegue estudar na multidão, atividade que requer apenas sua sagacidade e memória, muito menos você consegue concentrar-se quando tem de exercitar todos os poderes de sua alma, e isso em relação a um objeto muito acima da natureza. Quando seus olhos se enchem com as pessoas e as ações dos homens, e seus ouvidos, com seus discursos, é mais difícil fazer com que seus pensamentos e sentimentos fiquem livres dessas ocupações. Não o persuadiria a buscar a caverna de Pitágoras, nem o deserto do ermitão e, tampouco, a cela do monge, mas eu o aconselharia a freqüentar a solidão para que possa ter convivência com Cristo e consigo mesmo, como também com os outros. Fugimos tanto da solidão da superstição que lançamos fora a solidão da devoção contemplativa. [...] Apenas em algumas raras ocasiões lemos que as aparições de Deus, ou de seus anjos, a um de seus profetas aconteceu em meio à multidão, pois isso, geralmente, acontecia quando eles estavam sozinhos.
E como aconselho você a ir para um lugar isolado, também o aconselho a perceber qual o local e a postura que estão mais de acordo com seu espírito; se dentro de casa ou fora dela; se sentado ou caminhando. [...] Cristo tinha seu local habitual e, por conseguinte, sua responsabilidade habitual, e nós também devemos fazer o mesmo. Cristo tinha um local solitário em que se isolava mesmo de seus discípulos, e nós também devemos fazer o mesmo; as meditações de Cristo vão mais longe que seus pensamentos; elas afetam e tocam seu coração, e o mesmo deve acontecer com o nosso. Só há uma grande diferença no objeto. [...] Assim como a meditação de Cristo era a comporta, ou a eclusa, que permitia que o inferno inundasse seus sentimentos, também nossa meditação deve ser a comporta que permite que o céu entre em nossos sentimentos.
III A seguir, aconselho-o quanto à preparação de seu coração. O sucesso do trabalho depende muito da disposição de seu coração. Quando o coração do homem não tem nada que possa desagradar o Espírito, então ele é a agradável habitação de seu Criador. Deus não desistiu de habitar ali, até que o homem o rechaçou dali por meio de provocações indignas. Ali não havia estranheza até que o coração passou a ser pecaminoso, uma masmorra muito repugnante para que Deus tivesse prazer ali. E se a alma retornasse a sua primeira inocência, Deus, rapidamente, retornaria a sua antiga habitação; sim, desde que fosse renovada e restaurada pelo Espírito, purgada de suas cobiças, e embelezada com sua imagem, [...] o Espírito, certamente, pegaria essa alma para ali habitar e fazer seu templo. A porção que a alma se qualifica para conviver com Deus, essa também é a porção que ela pode realmente desfrutar do Senhor. Portanto, com toda diligência, "guarde o seu coração, pois dele depende toda a sua vida" (Pv 4.23). [...]
Mantenha seu coração o mais separado do mundo quanto puder; livre-se inteiramente de pensamentos relacionados a seus afazeres, seus problemas, suas alegrias e tudo que possa ocupar algum lugar em sua alma. Esvazie sua alma o máximo que puder e, assim, ela será mais capaz de encher-se com Deus. Essa é uma responsabilidade que exigirá todos os poderes da alma, se eles tivessem capacidade e atividade mil vezes maior que têm, e, portanto, você precisa deixar de lado todos os outros pensamentos e sentimentos, enquanto estiver ali ocupado. [...] Assim, quando você chegar ao monte da contemplação, encontrará ali a porção de Deus e de sua glória que seu coração pode suportar; e quase nada, exceto a incapacidade de seu espírito, pode impedi-lo de ter a posse plena dessa bênção. [...]
Portanto, leitor, considerando-se que o desfrutar de Deus nessa contemplação depende muito da disposição de seu coração, certifique-se de que todo o espaço disponível esteja vazio; e, se vier a buscá-lo, busque-o aqui com toda sua alma: não jogue Cristo no estábulo nem na manjedoura, como se você tivesse hóspedes melhores para os quartos principais. [...]
Certifique-se de que tem bem estabelecido esse grande trabalho, e faça-o com a maior seriedade possível. O hábito é aqui um pecado mortal. Não é possível aceitar bagatelas para as coisas sagradas: Deus será santificado por todos que se aproximam dele. Essas responsabilidades espirituais e magníficas que elevam a alma, dentre todas elas, são muito perigosas, se malograrmos nelas. Quanto mais elas fazem a alma progredir, ao ser bem utilizadas, mais também elas podem destruí-la, se forem utilizadas de forma irresponsável. [...] Trabalhe para ter a compreensão mais profunda da presença de Deus e da grandeza imensurável da majestade da qual se aproxima. [...] Trabalhe para compreender a grandeza do trabalho que você tenta realizar e fique sensível tanto em relação a seu peso quanto a sua altura, tanto em relação a sua importância quanto a sua maravilha. Se você estivesse implorando por sua vida no tribunal do júri, certamente trataria o assunto de forma séria; mas esse assunto seria irrelevante quando comparado com essa responsabilidade divina. Considere também a abençoada questão do trabalho, se você for bem sucedido. Será sua admissão na presença de Deus; o início de sua glória eterna na terra; um meio para fazer você viver acima do padrão dos outros homens, em que será admitido na sala seguinte onde se encontram os anjos; um meio para fazer você viver e morrer de forma alegre e abençoada; e, como o prêmio é tão grande, sua preparação deve ser responsável. Não há nada na terra que tenha uma vida tão alegre e abençoada quanto aqueles que estão acostumados com essas conversas celestiais. As alegrias de todos os outros homens não passam de brincadeira de criança, de risos de um louco; elas são como o sonho de saúde para o doente, ou como o pasto verdejante e viçoso para a besta faminta. Aquele que tira proveito do céu é o único ganhador; e o que o negligencia é o único perdedor. Portanto, imagine como a realização desse trabalho deve ser encarada de forma séria!