Capítulo 16
A DESCRIÇÃO DA GRANDE RESPONSABILIDADE DA CONTEMPLAÇÃO CELESTIAL
Embora espere que o que já foi dito não seja inútil, e que o leitor não porá tudo de lado, [...] ainda assim, mais uma vez, imploro que você estude diligentemente estas orientações a seguir, pondo-as rápida e fielmente em prática, se for um homem que toma consciência da responsabilidade revelada, e que não ousa resistir abertamente ao Espírito, [...] e que é fiel à paz e à prosperidade de sua alma. A prática é a finalidade de toda sã doutrina, e a fé correta põe essa finalidade em ação. [...]
Agora, descreverei e revelarei a você a responsabilidade que, sinceramente, o instigo a pôr em prática; e imagino que esteja pronto para perguntar-me: "Qual é esse trabalho tão exaltado?". [...] É a ação solene e bem estabelecida, por meio da meditação, de todos os poderes da alma sobre esse mais perfeito objeto, o descanso.
I O título geral que dou a essa responsabilidade é meditação; não da forma como é precisamente distinguida da cogitação, consideração e contemplação; mas como é compreendida no sentido mais comum e amplo de cogitação das coisas espirituais, e assim também devem ser compreendidas a consideração e a contemplação.
Essa meditação é a responsabilidade ordenada por Deus, não apenas em sua lei escrita, mas também na natureza, e jamais encontrei um homem que negasse isso; mas essa é uma responsabilidade que, infelizmente devo admitir, nem os piedosos, no que diz respeito aos meus conhecidos, praticam de forma constante e conscienciosa. Todos confessam com sua boca que essa é uma responsabilidade ordenada por Deus, mas que a negam ao, constantemente, negligenciá-la; e não conheço por meio de qual segurança costumeira acontece que homens, extremamente zelosos com relação às outras responsabilidades, negligenciem esta, como se não soubessem que é uma responsabilidade. Aqueles que se sentem imediatamente perturbados em sua mente quando perdem um sermão, um jejum, uma oração coletiva ou particular, jamais se sentiram perturbados por omitir, às vezes a vida toda, a meditação de suas responsabilidades; apesar de esta ser aquela responsabilidade por meio da qual todas as outras podem ser melhoradas, e por meio da qual a alma digere as verdades e de onde retira a força para nutri-la. [...] E por que tanta pregação se perde em nosso meio, e professores podem passar de sermão em sermão, sem jamais se fadigarem de ouvir ou de ler, e ainda assim têm a mente inanida e faminta? Não conheço causa mais verdadeira e maior que o ignorar e o negligenciar inconsciente da meditação. [...] Se eles ouvissem uma hora e meditassem sete, [...] encontrariam outro tipo de benefício nos sermões, distinto do bem usual que os cristãos ali encontram. [...]
II Mas como a meditação é a palavra geral, e não tenho em mente todo tipo de meditação, apresento aqui o que tenho em mente, mostrando-lhe, portanto, a diferença dessa meditação que o estimulo a fazer, e ela é bem diferente de todos os outros tipos; e a diferença reside no ato e em seu objeto. [...]
Considero o ato como o conjunto de ações solenes de todos os poderes da alma, [...] pois direcionamos você agora à ação, e não às relações ou às disposições; embora estas estejam pressupostas nessa ação. Qualifica-se para essa responsabilidade, por meio da graça sobrenatural e renovadora do Espírito, todo aquele que deve realizar essa responsabilidade sobrenatural. Essa responsabilidade é para ser executada pelos vivos, não pelos mortos; é o trabalho de todas as pessoas mais espirituais e sublimes e, portanto, não será bem realizada pelo coração meramente carnal e terreno. Também, essas pessoas, necessariamente, devem ter alguma relação com o céu antes que possam conviver ali com familiaridade. Imagino que esses indivíduos sejam filhos de Deus, quando os persuado a amá-lo; e que são da família de Deus, [...] quando os persuado a buscar a presença do Senhor e a habitar com ele. Imagino que eles tenham sua posição nesse descanso garantida, quando os persuado a regozijar-se na meditação desse descanso. Portanto, pressupondo-se que todas essas coisas não são as responsabilidades exigidas aqui, nem as que tenho em mente, gostaria que você fizesse com que suas disposições santificadas entrassem em ação e revissem de forma proveitosa esses sublimes relacionamentos. Hábitos e poderes só servem para nos capacitar a agir. [...] Que benefício tem qualquer poder se não for transformado em ação? Portanto, agora não o exorto a ser um cristão capaz, mas a ser um cristão ativo, de acordo com o grau de habilidade que você tiver. Assim como o armazenamento de dinheiro, de alimentos, ou de roupas, os quais você deixa ao seu lado sem jamais os usar, não serve para nada, exceto agradar seus caprichos, ou fazer com que os outros o admirem mais, também seus dons, poderes e hábitos, ainda em sua alma, sem jamais se converter em ação, trazemlhe pouco, ou nenhum, benefício, exceto o de satisfazer seus caprichos e de fazer com que você seja considerado um homem capaz, se os que estão por perto forem capazes de discerni-los.
Chamo isto de meditação: a ação dos poderes da alma; e quero dizer com isso que a alma é racional para diferenciar isso das cogitações da alma, como a alma sensível tem esse tipo de meditação por meio do senso comum, da fantasia e da apreciação. [...] A alma, como o corpo, tem seu trabalho e seu descanso; sua ocupação e seu ócio; sua intenção e sua remissão; e os alunos diligentes são comumente sensíveis em relação ao trabalho e à exaustão do espírito e da mente, como o são em relação aos membros do corpo. É essa ação da alma que persuado você a realizar.
Denomino-a de ação de todos os poderes da alma para diferenciá-la da meditação comum dos alunos, que nada mais é que o mero uso da mente. Não me refiro ao simples pensar, nem ao mero uso da sagacidade ou da memória, mas algo cuja natureza é mais sublime e mais magnífica. Quando compreendemos a verdade apenas como verdade, essa é apenas uma compreensão insípida e vaga; mas quando ela é compreendida como algo bom e verdadeiro, essa é uma compreensão rápida e agradável. Assim como o homem não tem propensão para viver de acordo com a verdade que ele conhece, exceto se ela o tocar profundamente, também sua alma não desfruta de sua doçura, exceto se a especulação passar a ser sentimento. A compreensão não diz respeito à alma toda e, portanto, ela não poderia fazer o trabalho todo. Assim como Deus fez várias partes nos homens para desempenhar diversas funções para sua alimentação e vida, também ele ordenou que as faculdades da alma desempenhassem várias funções para sua vida espiritual. [...] A compreensão precisa pegar verdades e prepará-las para a vontade, bem como precisa recebê-las e recomendá-las aos sentimentos; [...] os sentimentos são, por assim dizer, a base da alma. [...] Enquanto a verdade não passar de uma verdade que vaga pela mente, a alma não recebe nem sequer metade dela nem se apega a ela. Cristo e o céu têm várias maravilhas e, portanto, Deus formou a alma com o poder de compreender de diversas maneiras para que possamos ser capazes de compreender essas diversas maravilhas em Cristo. Assim como as criaturas têm diversos usos, também Deus nos deu diversos sentidos para que pudéssemos desfrutar dos deleites deles todos. Se não possuíssemos o sentido do olfato, que benefício teriam para nós os agradáveis aromas das flores e dos perfumes? Se Deus não nos tivesse dado o sentido da audição, que proveito a música e a linguagem teriam para nós? Se fossemos privados do sentido do paladar, que deleite encontraríamos nas carnes, nas bebidas e nos doces? Assim também, que benefício teria para nós toda a glória do céu; ou que prazer teríamos na bondade e na perfeição de Deus, se não tivéssemos os sentimentos de amor e de alegria por meio dos quais somos capazes de nos deleitar nessa bondade? Também que força e doçura proveitosas você possivelmente poderia receber, por meio de suas meditações sobre a eternidade, enquanto não exercitar esses sentimentos, os sentidos da alma, por intermédio dos quais ela recebe essa doçura e força?
Isso foi o que iludiu os cristãos nessa responsabilidade: eles acham que a meditação não passa de meditar sobre as verdades e a transposição dessas verdades para a compreensão e a memória. [...] Portanto, esta é a grande responsabilidade que temos em mãos, e este é o trabalho que gostaria que você iniciasse: fazer com que essas verdades passem de sua mente para seu coração; e com que todos os sermões que ouviu sobre o céu e todos os movimentos que você já concebeu sobre esse descanso possam ser transformados em sangue e espírito dos sentimentos, para que você possa senti-los reavivando-o e aquecendo seu coração, e para que possa pensar sobre o céu da forma como o céu deve ser concebido.
Há dois acessos à contemplação, diz Bernardo: um no intelecto e outro no sentimento; um na luz e outro no calor; um por meio da aquisição e o outro por meio da devoção. Se você, enquanto viver, não estudar nada mais a não ser o céu, e tiver seus pensamentos sob seu domínio para levá-los ali em todas as ocasiões que assim desejar, e você não conseguir ir mais longe que isso, essa não seria a meditação que tinha em mente, e ela também não traria muitos benefícios a sua alma nem a deixaria melhor; como é toda sua alma que deve possuir Deus daqui para frente, também o todo, de uma forma menor, o deve possuir aqui. [...] A mesma porção que você, sinceramente, permitir que Deus trabalhe em sua compreensão e em seus sentimentos, essa também será a porção que desfrutará do Senhor; e esse é o venturoso trabalho dessa meditação. Assim, espero que veja aqui que é preciso fazer algo mais que apenas lembrar-se do céu e pensar sobre ele. Da mesma forma que correr, fazer uma roda e mover-se, como também atividades similares a elas, não só nos fazem mover as mãos ou os pés, mas também utilizam e exercitam o corpo todo, também a meditação utiliza e exercita a alma toda. [...] Se nessa responsabilidade de meditação você exercitar o conhecimento, e os dons, e a fé em milagres, mas não exercitar o amor e a alegria, você simplesmente não faz nada; você faz o papel de uma criança, e não de um adulto; o papel de um pecador, e não de um santo. [...] Se sua meditação o leva a encher seu caderno de anotações com noções e boas mensagens a respeito de Deus, em vez de encher seu coração de anseio pelo Senhor, de fazê-lo deleitar-se nele, seu livro, pelo que sei, é tão cristão quanto você. Anote a descrição, feita por Davi, de um homem abençoado: "Sua satisfação está na lei do Senhor, e nessa lei medita dia e noite" (Sl 1.2).
Denominei essa meditação de "ação solene e bem estabelecida" para diferenciá-la daquela que é ocasional e superficial. Assim como há orações solenes, quando nos envolvemos totalmente com a responsabilidade, e outras que são breves e repentinas, comumente chamadas de derramamento, quando um homem, em meio a outras responsabilidades, envia um breve pedido a Deus, também existe a meditação solene, quando nos aplicamos somente a essa responsabilidade; e existe a meditação breve e superficial, quando, em meio a nossas responsabilidades, temos alguns bons pensamentos sobre Deus em nossa mente; e assim como a oração solene é ou, em primeiro, bem estabelecida, quando um cristão, ao considerá-la uma responsabilidade permanente, pratica-a de forma resoluta e constante, ou, em segundo, ocasional, quando alguma ocasião em particular nos leva a praticá-la de forma extraordinária, também a meditação ad-mite esse tipo de diferenciação. Bem, apesar de também o persuadir a fazer essa meditação que se mescla com as responsabilidades corriqueiras de seu chamado, e a que uma ocasião em particular o leve a ela, ainda assim essas não são as principais coisas que aqui tenho em mente; mas gostaria de persuadi-lo a considerá-la como uma responsabilidade constante e permanente, como você ouve a Palavra, e ora, e lê as Escrituras; e que você estabeleça, de forma solene, essa responsabilidade em sua vida e transforme-a, no período em que a pratica, em sua única responsabilidade, e não mais a misture com outras responsabilidades, da mesma forma que você não mistura a oração com outras responsabilidades. Assim, você é capaz de ver, à medida que a diferenciamos por sua ação, a que tipo de meditação nós nos referimos; ou seja, é a ação solene e bem estabelecida de todos os poderes da alma.
III
A segunda parte da diferença é retirada de seu objeto, o descanso, ou seja, o estado mais abençoado do homem em seu desfrutar de Deus no céu. A meditação tem um grande campo em que pode caminhar; e ela tem muitos objetos em que pode trabalhar, como também assuntos e linhas ou palavras das Escrituras, tantos quanto o número de criaturas existentes em toda a criação; e há passagens específicas e bem discerníveis da providência no governo das pessoas e das ações por intermédio do mundo; mas a meditação à qual o direciono diz respeito apenas à finalidade de tudo isso e a essas coisas à medida que se referem a essa finalidade. Ela não é o caminhar da montanha para o vale, do mar para a terra, de reino para reino, de planeta para planeta; mas é o caminhar das montanhas e vales até o santo monte Sião; de mares e terras para a terra dos vivos; dos reinos deste mundo para o reino dos santos; da terra para o céu; do tempo para a eternidade. É o caminhar acima do sol, da lua e das estrelas; é o caminhar no jardim e no Paraíso de Deus. Pode parecer muito distante, mas os espíritos são rápidos, quer no corpo quer fora do corpo; o movimento deles é veloz. Não gostaria que você lançasse fora os outros tipos de meditação; mas, certamente, como o céu tem primazia em perfeição, ele também deve ter a primazia em nossa meditação. Aquilo que nos deixa mais felizes, quando o temos, também nos deixará mais alegres, quando meditamos sobre ele, especialmente quando essa meditação é um grau de posse, se ela for a meditação afetuosa como a que descrevo aqui. [...]
São seus sentimentos, mais que sua inteligência e sagacidade, que precisam ser usados nesse prazer divino do qual falamos aqui. Eles são verdades bastante conhecidas e professadas e de onde nossa alma deve retirar os nutrientes para se alimentar. [...] O conhecimento não tem inimigos, exceto a ignorância. E ninguém jamais falou contra esse caminho divino, exceto aqueles que não o conhecem nem o utilizarão. Temo mais a negligência do homem que aprova essa meditação que a oposição ou os argumentos contra ela. A verdade perde mais com seus amigos relaxados que com os inimigos mais ferrenhos. [...]