Capítulo 7

AS MARAVILHAS DE NOSSO DESCANSO

 

Contudo, examinemos um pouco mais de perto e bebamos diretamente da fonte pura, as Escrituras, que outras maravilhas esse descanso nos oferece. E o Senhor esconde-nos nas fendas da rocha e cobre-nos com as mãos da indulgente graça, enquanto nos aproximamos para ter essa visão. E o Senhor permita que possamos descalçar os sapatos de irreverência e das concepções carnais enquanto estivermos nesse solo sagrado.

 

I

Quanto ao estilo do descanso dos santos ser chamado de a posse comprada é uma honra singular e ornamento notável; isso é fruto do sangue do Filho de Deus; sim, o fruto principal; sim, o fim e perfeição de todos os frutos e a infalibilidade desse sangue. Certamente, o amor é o ingrediente mais precioso em toda sua composição; e de todas as flores que crescem no jardim do amor, poderia haver alguma mais doce e mais bela para a grinalda que esse sangue? Amor maior que este não há: sacrificar a própria vida em favor do amante. E, para isso, nosso Redentor, bem diante de nossos olhos, derramou esse amor, o sentido mais vivo, e a lembrança mais revigorante, sobre nossa alma! Ó, como nossa alma ficará plena com os perpétuos arroubos, e pensar que [...] passamos por tudo isso e chegamos seguramente aqui no seio de Deus! [...] E, para todo o sempre, contemplaremos, por assim dizer, as feridas do amor com olhos e coração amorosos. [...]

Naquele momento, com que maravilhosa compreensão, os santos contemplarão, por toda a eternidade, seu abençoado Redentor! Não tratarei da vã e audaciosa questão daqueles que querem saber se o glorioso corpo de Cristo ainda reterá as feridas, ou se elas serão apenas cicatrizes. Mas o que é realmente certo é que a memória desse sacrifício será vívida, e as marcas desse amor profundas, e sua ação tão forte como se essas feridas ainda estivessem em nossas retinas. [...] Agora, o coração do Senhor está aberto para nós, e o nosso, cerrado para ele; mas quando o coração dele se abrir, o nosso também se abrirá. Ó abençoada assembléia que lá teremos. [...] Mas aqui estou perdido, pois meu entendimento me engana e, em sua percepção, fica muito aquém de tudo que lá teremos. Sei apenas isto: esse descanso será o louvor extraordinário de nossa herança, comprada com preço daquele sangue; e a extraordinária alegria dos santos, ao contemplar quem nos comprou e o preço pago junto com aqueles que foram comprados por ele. Nem a visão das feridas do amor reavivará nossas feridas de tristeza [...]. Ali, como o amor de Cristo, para todo o sempre, será precioso para nós, os que o despimos, por assim dizer, de sua majestade e glória e pusemos sobre ele nosso miserável roupão de carne, para que ele pudesse pôr sobre nós os roupões de sua própria justiça e glória; e ele não nos salvou da injustiça cruel, mas da merecida ira de seu Pai! Bem, cristãos, como costumam fazer em seus livros, e em seus bens: escrever o preço que eles lhe custaram; assim também em sua glória e em sua justiça, escreva o preço: o precioso sangue de Cristo.

 

II

A segunda pérola no diadema dos santos é o ser de graça. Esta parece eclipsar a qualidade anterior. [...] Mas essa aparente discórdia não passa de uma agradável diversidade, compondo aquela harmonia que constitui a melodia. Esses dois atributos, comprado e de graça, são dois elos de ouro que, por meio de seu agradável entrelaçamento, compõem a coroa para as colunas no templo de Deus.

Isso custou muito caro para Cristo, mas, para nós, é de graça. Toda pedra utilizada na edificação desse templo não é uma pedra de graça? Ó, a admiração eterna que, certamente, deve surpreender os santos que pensam sobre essa gratuidade. O que o Senhor viu em mim para julgar que eu deveria gozar dessa condição? Por que eu, um pobre miserável, doente e desprezado, deveria ser revestido com o brilho de sua glória? [...] Ó, quem pode sondar esse amor incomensurável? Não se menciona nosso valor nem nossa infâmia; se o valor fosse a condição para nossa admissão, poderíamos nos sentar com João e chorar, "porque não se encontrou ninguém [no céu nem na terra] que fosse digno de abrir o livro" (Ap 5.4). Mas o Leão da tribo de Judá é digno e prevaleceu; e, por meio desse título, ganhamos a herança. [...] Aqui nossa comissão é esta: "Vocês receberam de graça; dêem também de graça" (Mt 10.8). Cristo, no entanto, a recebeu por um alto custo, mas nos deu de graça. [...] O papa e seus servos recebem pelo perdão e pelas indulgências que concedem, Cristo, porém, não recebe nada dos seus. A comutação da pena deve custar muito caro ao bolso dos homens, caso contrário, são expulsos da sinagoga, e alma e corpo, entregues para o demônio; mas ninguém fica de fora daquela igreja por falta de dinheiro, tampouco a pobreza é algo desagradável para Cristo. Um coração vazio pode impedir a entrada de alguém, mas não um bolso vazio. Seu reino de graça sempre foi mais congruente com a desprezível pobreza que com a riqueza e a honra, e as riquezas dificultam muito mais a entrada que a carência; pois Deus escolheu "os que são pobres aos olhos do mundo para serem ricos em fé e herdarem o Reino que ele prometeu aos que o amam" (Tg 5.2).

Sei que "o trabalhador merece o seu salário" (Lc 10.7) e aqueles "que pregam o evangelho, que vivam do evangelho" (1Co 9.14). [...] No entanto, desejaria que os bem-intencionados ministros de Cristo levassem em consideração o que é aconselhável, e também o que é legítimo, sabendo-se que a salvação de uma alma é melhor que uma grande quantidade de dinheiro, e que nosso ganho, embora legítimo, é um ganho abominável, pois é pedra de tropeço para a alma de nosso rebanho. Tornemos o evangelho da graça tão pouco oneroso e incômodo quanto possível. Prefiro não aceitar o dízimo de meu rebanho que destruir as almas por quem Cristo morreu; e embora Deus tenha ordenado que aqueles "que pregam o evangelho, que vivam do evangelho" (1Co 9.14), prefiro sofrer todas as coisas que ser um obstáculo para o evangelho; e seria melhor morrer que permitir que algum homem transforme isso em minha honra inútil. [...] Se a necessidade das almas e a promoção do evangelho exigir isso, prefiro pregar o evangelho maltrapilho e faminto que contender implacavelmente pelo que é legítimo; e se eu assim agir, não terei do que me gloriar, pois a carência se abaterá sobre mim; sim, que o infortúnio me persiga, se não pregar o evangelho, embora jamais tenha recebido algo dos homens. Quão impróprios são os mensageiros dessa graça e desse reino gratuitos se preferirem perder a alma e o coração de seu rebanho que perder um tostão daquilo que lhe é devido; se preferirem aborrecer as pessoas depondo contra a mensagem de Deus que tardar um pouco seus direitos, contendendo com elas em juízo pelo salário do evangelho, e transformando as boas novas que alcançam seu coração carnal parecer as tristes novas por causa desse fardo! Esse não é o caminho de Cristo e seus discípulos, nem a veneração da abnegada doutrina de entrega e de sofrimento que eles ensinaram. Fora com todas essas ações que vão contra o fim principal de nosso estudo e chamado de ganhar almas; e que o infortúnio acompanhe esse ganho que obstrui o ganhar pessoas para Cristo. Sei que a carne agora fará objeções por causa das necessidades, e a desconfiança não aceita argumentos; mas nós que temos o suficiente para responder às reservas de nosso povo, levemos algumas dessas respostas para casa para que ensinemos a nós mesmos antes de ensinar ao nosso rebanho. Quantas pessoas você conhece, por quem Deus sofreu, que passam fome na vinha do Senhor?

Assim como não pagamos nada pelo amor eterno de Deus, nem pelo Filho de seu amor, nem pelo seu Espírito, nem por nossa graça e fé, também não devemos pagar nada pelo nosso descanso eterno. [...] O coração quebrantado que conheceu o deserto do pecado entende e sente o que digo. Que pensamento maravilhoso pensar na insondável diferença entre o que merecemos e o que recebemos; entre o estado em que deveríamos estar e o em que estamos. [...] Ó, como foi de graça todo esse amor; e como foi de graça toda essa glória que desfrutamos. [...] A sabedoria infinita moldou todo o plano da salvação do homem em um molde de compra e de gratuidade, para que o amor e a alegria do homem possam ser aperfeiçoados, e a honra da graça, mais altamente desenvolvida; que o pensamento do mérito não obscureça a alegria e o amor do homem, nem obstrua a graça, para que a porta do céu se abra apoiada nessas duas dobradiças. Portanto, que: "Merecido", seja escrito no chão do inferno, mas na porta do céu: "O dom gratuito".

 

III

O terceiro atributo confortável desse descanso é que ele é a posse apropriada e específica dos santos. Dentre todos os filhos dos homens, ele não pertence a ninguém mais; não que isso diminua a grandeza ou a gratuidade dessa dádiva, pois agradaria a Deus que todo o mundo desfrutasse dele. Contudo, Deus resolveu que seria de outra forma, e que esse descanso seria desfrutado apenas por poucos; assim, encontrar nosso nome entre esses poucos faz valorizar ainda mais nossa alegria. [...] A misericórdia da escolha exerce mais influência em nós que qualquer outra misericórdia. Se chovesse apenas em nosso terreno, ou se o sol iluminasse apenas nossa casa, ou se a bênção do céu fosse dividida entre nossos rebanhos e os dos outros homens, como o foi entre Jacó e Labão, devemos agradecer com muito mais fervor que agora, enquanto possuímos o mesmo em comum. [...] Quanto mais baixo o peso no prato da balança descer, mais alto o outro sobe; e se uma das pás do moinho cair, isso faz com que a outra suba. As misericórdias dos santos aqui não seriam enfraquecidas, se o mundo todo fosse tão santo quanto eles; e a transmissão de sua felicidade é o maior desejo deles; no en-tanto, isso talvez pudesse entorpecer sua gratidão, e a graça diferenciadora não seria conhecida. Mas quando uma pessoa é iluminada, mas outra permanece na escuridão; uma é transformada, e outra, aprisionada por seus prazeres, isso nos leva a clamar da mesma forma que o discípulo: "Senhor, mas por que te revelarás a nós e não ao mundo?" (Jo 14.22). [...]

Naquele momento, o mundo impenitente verá uma razão para a singularidade dos santos, enquanto estiveram na terra, e será capaz de responder a suas exigências: "Por que você deve ser mais santo que seu próximo?". Até mesmo por que eles, de bom grado, seriam mais felizes que seu próximo. E por que você não pode ser como os outros e viver como o mundo a sua volta? Até mesmo porque são totalmente avessos a se apressar como os outros, ou ser condenados como o mundo ao redor deles. Nesse momento, não se conhece que a singularidade sincera na santidade não é hipocrisia nem loucura. Se o ser singular nessa glória é algo tão desejável, certamente ser singular no viver piedoso não é algo desprezível. Como cada um deles conhece suas próprias feridas e sua tristeza, também eles sentirão sua própria alegria; e se agora podem dizer que Cristo é deles, e Deus é deles, muito mais poderão dizer isso quando tomarem posse total do Senhor! Pois assim como o Senhor toma seu povo como sua herança, também ele será a herança de seu povo para todo o sempre.

 

IV

O quarto atributo desse descanso é que ele é a comunhão dos abençoados santos e anjos de Deus. O cristão não será tão singular a ponto de ser solitário. Embora apropriado aos santos somente, é comum a todos os santos, mas o que é uma associação dos espíritos abençoados em Deus; uma corporação dos santos aperfeiçoados, da qual Cristo é o Cabeça; a completa comunhão dos santos? E isso não faz com que essas alegrias sejam, portanto, mediadas, obtidas para nós por meio de criaturas, como acontece aqui; pois todas as linhas saem do centro, e não umas das outras, e, no entanto, a disposição delas as torna mais comuns que uma pessoa só poderia ser. Embora as cordas não recebam seu som e doçura umas das outras, ainda assim, a cooperação entre elas cria uma harmonia que uma só delas não poderia criar; e aqueles que oraram, e jejuaram, e choraram, e foram atentos, e esperam juntos para, agora, alegrar-se, e desfrutar, e louvar juntos, acho eu, deve aumentar muito a alegria deles. [...] Caros companheiros cristãos, estou certo que da mesma forma que estivemos juntos no trabalho, na obediência, no perigo e na angústia, também deveremos estar juntos na grande recompensa e libertação; e da mesma forma como enfrentamos zombarias e desdém, também seremos coroados e honrados juntos; e nós, que enfrentamos o dia da tristeza, também desfrutaremos juntos daquele dia de alegria; e aqueles que estiveram conosco na perseguição e na prisão, também estarão conosco naquele lugar de consolação. [...] Quando observo a face do precioso povo de Deus e, com fé, penso naquele dia, que pensamento revigorante experimento! Nós, você deve cogitar, não nos lembraremos dos ferimentos que tivemos aqui; de nossa comunhão em obediência e em sofrimento; com que assiduidade, nossos gemidos, por assim dizer, formaram um único som; e o conjunto de nossas lágrimas, um único manancial; e nossos desejos conjuntos, uma única oração? E agora todos os nossos louvores devem formar apenas uma melodia, e todas as nossas igrejas, uma só igreja, e todos nós, um só corpo; pois seremos um em Cristo, assim como ele e o Pai são um. É verdade que precisamos ser muito cuidadosos nesse caso, de que, em nosso pensamento, não buscamos nos santos aquilo que somente está em Cristo, e que não lhes damos o privilégio próprio do Senhor, nem esperamos que grande parte de nosso conforto esteja no desfrutar deles: somos muito propensos a esse tipo de idolatria. No entanto, ele que nos ordena a amá-los agora nos dará licença, na mesma subordinação a ele mesmo, de amá-los naquele momento em que o Senhor os transformar em pessoas muito mais passíveis de ser amadas; e se podemos amá-los, certamente regozijaremos neles; pois o amor e o regozijo não podem ficar sem a alegria em resposta a eles. [...] Sei que Cristo é tudo em todos; e que é a presença de Deus que faz com que o céu seja céu. Mas, lembrar-me que ali encontrarei meus mais queridos e preciosos amigos -- de quem recebi doces conselhos, os que andaram comigo em temor ao Senhor, e em integridade de coração, na face de quem estava escrito o nome de Cristo, cuja doce e sensível menção de suas maravilhas fez meu coração arder em meu peito--adoça meu pensamento. [...]

Alguns têm dúvidas quanto a se reconheceremos uns aos outros no céu ou não. Certamente, nenhum conhecimento que temos agora deve cessar, exceto aquele que implica em nossa imperfeição; e que imperfeição isso pode implicar? Ainda mais, nosso presente conhecimento será expandido de forma inacreditável. Ele realmente será posto de lado, assim como a luz das velas e das estrelas são postas de lado com o nascer do sol; e, mais propriamente, nossa ignorância, mais que nosso conhecimento, é que será posta de lado; realmente, não reconheceremos uns aos outros conforme a carne, nem por meio da estatura, voz, cor, compleição, aparência ou forma exterior. Se tivéssemos conhecido a Cristo dessa forma, então não mais o conheceríamos ali dessa mesma maneira; ali tampouco conheceremos por talentos ou pelo dom do conhecimento, nem por títulos de honra ou sinais de dignidade no mundo, nem por afinidade ou consangüinidade; nem por benefícios ou relacionamentos influentes, nem por faixa etária ou, assim creio, sexo; mas seremos conhecidos pela imagem de Cristo e por meio do relacionamento espiritual, e também por nossa antiga fidelidade para aumentar nossos talentos; e, sem dúvida, é dessa forma que conheceremos e seremos conhecidos. Não só conheceremos nossos velhos amigos e conhecidos, mas também todos os santos de todas as eras, cujas faces jamais vimos quando estávamos na carne, e esses santos nós os conheceremos e desfrutaremos de sua presença. [...] Aqueles que agora estão dispostos a ministrar para o nosso bem, naquele momento, prontamente, serão nossos companheiros na alegria para a perfeição de nosso bem; e aqueles que, em nossa conversão, tiveram tamanha alegria no céu, regozijarão alegremente conosco em nossa glorificação. Cristão, acho que essa será a assembléia mais honrada que você já viu, e o grupo mais alegre a que você já pertenceu. [...] Já chegamos lá no que diz respeito ao título, à sinceridade e às primícias; mas apenas lá tomaremos posse total de nossa herança. Ó amado, se já há felicidade em morar com os santos em sua imperfeição, enquanto eles ainda têm o pecado para os afligir, mas também a santidade para adoçar o convívio, como seria morar com eles em sua perfeição, onde os santos são santos, e só santos? [...] Se achamos que estamos nos subúrbios do céu, quando os ouvimos anunciar a beleza de nosso Senhor e falar sobre as maravilhas de seu reino, então que dia magnífico será aquele quando nos unirmos a eles, no reino e por aquele reino, em louvores ao nosso Deus! Portanto, concluo que esta é uma maravilha singular do descanso no céu: a de que somos "concidadãos dos santos e membros da família de Deus" (Ef 2.19).

 

V

Outra propriedade de nosso descanso é que as alegrias dele são provenientes diretamente de Deus [...]. Devemos ver Deus face a face e ficar continuamente em sua presença e, por conseguinte, receber nossa vida e conforto diretamente dele. Se Deus fará uso de alguma criatura para o nosso serviço ali, ou, se assim fizer, não poderia dizer que criatura e que uso, pois isso é mais do que já conheço. Parece [...] que a criatura terá um dia de libertação, e isso na gloriosa liberdade dos filhos dos homens; mas estas ainda são questões muito difíceis para mim: se antes, ou se no momento da grande e completa libertação; se perdurará por toda a eternidade, ou para qual finalidade em particular elas continuarão a existir. Quando Deus falar claramente, e meu entendimento ficar mais claro, então saberei essas coisas, mas é certo que nossas grandes e maiores alegrias serão imediatas, se não todas elas. Agora, realmente não temos nada imediatamente. [...] Da terra, do homem, do sol e da lua, da influência dos planetas, da ministração de anjos, do Espírito e de Cristo; e, indubitavelmente, quando mais a corrente de água se distancia da fonte, mais impura ela é. Ela reúne todas as impurezas que encontra no caminho. [...] Cristo, na verdade, é a pérola preciosa, mas ele, geralmente, é apresentado por meio de mãos leprosas; e, assim, desonramos as riquezas do evangelho quando procuramos torná-lo honrado aos olhos dos homens; e ofuscamos a glória dessa jóia por meio de nossas expressões grosseiras e entorpecidas, pois não temos a intenção de revelar seu brilho, e os ouvintes a julgam por intermédio de nossas expressões, e não por intermédio de seu real valor. A verdade é o melhor que os homens apreendem, mas representa pouco do que Deus expressa em sua Palavra, e, ainda assim, o que eles conseguem apreender são incapazes de proferir. [...] Se um anjo do céu pudesse pregar o evangelho, ainda assim ele não poderia entregar sua mensagem de acordo com sua glória; e muito menos nós que jamais vimos o que eles viram e que mantemos esse tesouro em vasos de barro. Os confortos que fluem por meio do sermão, dos sacramentos, da leitura, da companhia, das reuniões e das criaturas não passam de confortos parciais; e a vida que provem disso não passa de uma vida parcial, em comparação com aquilo que o Senhor deve proferir com sua própria boca e estender para nós por meio de sua própria mão. O cristão, aqui, sabe por experiência que suas alegrias mais imediatas são suas mais doces alegrias: as que têm menos do homem e provêm mais diretamente do Espírito. Essa é uma razão, em minha concepção, por que os cristãos que passam muito de seu tempo em oração secreta, e em meditação e contemplação são homens cuja vida e cuja alegria são mais notáveis, em comparação com os que estão mais envolvidos em escutar, ler e participar de conferências, pois aqueles que estão mais próximos do poço recebem tudo mais imediatamente das mãos de Deus. [...] Ainda não chegamos ao tempo e à posição em que receberemos tudo diretamente da mão de Deus. Da mesma forma como Deus fez todas as criaturas e instituiu todas as ordenanças para nós, ele também continuará a suprir todas as nossas necessidades. Devemos, até que recebamos tudo nele, ficar contentes com os presentinhos de amor que ele nos oferece. [...] Há alegria nessas ofertas à distância, mas a plenitude está em sua presença. Ó cristão! Você conhecerá a diferença entre a criatura e o Criador, e o que a essência de cada um deles propicia. Ali, teremos luz sem o candeeiro, e dia perpétuo sem o sol. [...] Ali, teremos descanso sem que seja preciso dormir, pois Deus será nosso descanso. [...] Ali, teremos o entendimento iluminado sem que seja preciso ter a lei escrita, pois Deus aperfeiçoará sua lei em nosso coração, e todos nós seremos perfeitamente instruídos por Deus. E sua lei será a nossa, e sua face será nossa luz para sempre. Ali, nós teremos alegria, que não obtemos das promessas, nem nos foi entregue em casa pela fé e pela esperança. O olhar e a posse excluirão a maioria delas. Ali, teremos comunhão sem os sacramentos, quando Cristo deverá beber conosco o vinho do fruto novo; ou seja, renovar-nos-á com o vinho reconfortante da alegria imediata, no reino de seu Pai. [...] Ali, devemos viver na casa e na presença de meu Pai, e Deus será tudo em todos; ali, estamos realmente em casa e no descanso.

 

VI

Outra maravilha é esta: ele, para nós, será o repouso oportuno. Aquele que espera o fruto da vinha na época propícia, e que faz com que seu povo seja como as árvores plantadas à beira do riacho, frutífero em sua época apropriada, ele também lhe dará sua coroa na época propícia. Aquele que tem palavras de alegria para a época da fadiga certamente fará com que o tempo da alegria apareça na época mais oportuna. E os que conheceram a época da graça, e se arrependeram, e creram na época apropriada, se não desfalecerem, também serão colhidos na época oportuna. Se Deus conhece a época oportuna das misericórdias, até mesmo para seus inimigos, e as semanas apropriadas para a colheita na época propícia, e, por meio de aliança inviolável estabeleceu o dia e a noite em suas épocas apropriadas, então, certamente, a colheita dos santos e o dia de alegria dele também chegarão à época oportuna. [...] Aquele que deu a conhecer à cegonha, à garçaazul, à andorinha seu tempo propício certamente guardará seu tempo propício. Neste mundo, após uma longa noite de tristes trevas, o raiar do dia e o levantar do sol da justiça não parecerá oportuno? Após enfrentar um rigoroso inverno, a chegada da primavera, nesse clima frio, não será oportuna? Após navegar, como Paulo, vagarosamente por muitos dias, e muito tempo for despendido, e a navegação ficar cada vez mais perigosa; e após o sol e as estrelas não aparecerem por muitas noites e dias, e uma feroz tormenta cair sobre nós, e perdermos praticamente todas as esperanças de sermos salvos, você não acha que o porto do descanso será oportuno? Após uma longa e entediante viagem, com muitos perigos ao longo do caminho, nossa casa não parecerá oportuna? Após uma longa e temerária guerra, em que vivemos em meio aos nossos violentos inimigos, em que tivemos de ficar constantemente alertas, e após muitos ferimentos profundos, a paz com vitória não parecerá oportuna? Após muitos anos de prisão, insultado pela zombaria dos inimigos, após padecer muitas necessidades, e mal suprir as necessidades básicas, a libertação total em que se goza de uma condição plena, saindo dessa prisão para subir ao trono, não seria oportuna? Certamente, um homem, que olha o mundo de frente, pensaria que o descanso parece oportuno para todos os homens. Alguns de nós definham por causa da doença e gemem em razão das sérias dores, clamando ao amanhecer: "Deus, como gostaria que já fosse noite!", e à noite: "Deus, como gostaria que já fosse dia!"--fatigado de ir, exausto de sentar-se, fatigado de ficar em pé, fatigado de deitar-se, fatigado de comer, de falar, de andar, fatigado dos nossos grandes amigos, fatigado de nós mesmos. Ó, quantas vezes isso não aconteceu comigo, e, assim, o descanso não seria ainda mais oportuno? Alguns reclamam sob a pressão dos tempos; fatigados de seus impostos, fatigados de seu aquartelamento, fatigados de pilhagens, fatigados de seus medos e perigos, fatigados de sua pobreza e necessidades, e, assim, o descanso não seria ainda mais oportuno? Onde quer que você vá, quem quer que seja sua companhia quando voltar--onde não se ouve a voz da lamúria, já que os homens vivem em contínua fadiga, mas, especialmente os santos, que estão mais fatigados daquilo que o mundo não pode sentir? Por mais piedoso que seja o grupo ao qual pertence, mas você não ouvirá sempre as lamúrias de que algo aflige essas pessoas? Alguns se fadigam por causa da mente cega, das dúvidas com respeito ao caminho que percorrem, inquietados por quase todos seus pensamentos; outros estão fadigados por causa de um coração endurecido, ou orgulhoso, ou ainda apaixonado, e outros ainda estão fadigados por causa disso tudo e muito mais; alguns estão fadigados por causa de suas dúvidas diárias e de seu temor quanto a sua condição espiritual; e outros em razão da ausência de alegrias espirituais, e outros ainda em virtude da compreensão da ira de Deus; o descanso não é agora ainda mais oportuno? Quando um pobre cristão deseja a libertação, e ora e espera por ela há muitos anos, o descanso não lhe é oportuno? Quando ele está prestes a desistir, dizendo: "Temo não chegar ao fim, e também que minha fé e paciência não se sustentem", essa não é uma ocasião oportuna para o descanso? [...] Se a voz do rei foi oportuna para Daniel, quando, bem cedinho, ele o chamou na cova dos leões pedindo que aceitasse muito mais do que tinha antes, então, em minha opinião, aquela voz matinal de Cristo, nosso Rei, chamando-nos para deixar para trás o terror em meio aos leões, para obter seu descanso em meio a seus santos, aquela voz, para nós, deverá ser bem oportuna. [...] Aqui, reclamamos, com freqüência, por não termos uma fatia maior nos confortos desta vida; por nossos livramentos não acontecerem com maior rapidez e de forma mais notável; pelo mundo prosperar mais que nós; por ausência de resposta, no momento, às nossas orações, sem levar em consideração que nossa porção está guardada para uma época mais oportuna; por esses frutos nem sempre serem de inverno, mas, quando o inverno chegar, teremos nossa colheita. Reclamamos por não acharmos uma Canaã no deserto, nem cidades de descanso na arca de Noé, nem canções de Sião em terra estranha; por não termos um porto no principal oceano; por não encontrarmos nossa casa no meio do caminho, e por não sermos coroados em meio ao combate, e por não termos nosso descanso no calor do dia, por não termos nossa herança antes de ficarmos idosos, e por não termos o céu antes de sair da terra; e isso tudo não seria bastante oportuno?

Confesso, em relação ao culto da igreja, que a remoção dos santos pode parecer um tanto inoportuna. [...] Devo confessar que esse é um dos pensamentos que mais me entristece, pensar naqueles instrumentos úteis, a quem Deus, recentemente, chamou para que abandonassem sua vinha, quando há muitos indolentes, e a colheita é grande, e muitas congregações estão abandonadas, e o povo parece um rebanho sem pastor, e, ainda assim, os trabalhadores são chamados e abandonam seu trabalho, especialmente quando se abre uma porta de liberdade e de oportunidade; não podemos deixar de lamentar um juízo tão doloroso e achar que a remoção, em relação à igreja, é inoportuna. Sei que proclamo exatamente o pensamento de vocês, e vocês estão realmente prontos para tomar a minha dianteira nessa solicitação. Temo que vocês estejam muito sensibilizados em relação a essas minhas palavras e, portanto, sinto-me relutante em aguçar a ferida de vocês. Percebo que adotam a postura dos presbíteros efésios e prefiro apaziguar a violência da paixão de vocês. [...] Mas ponderem, ó meus queridos amigos, será que Deus necessita de um verme como eu? Ele não pode suprir mil vezes mais as necessidades de vocês? Sabem muito bem que quando o caso de vocês era ainda pior, o Senhor, mesmo assim, proveu para vocês. Ele tem um trabalho a fazer e não encontrará instrumentos para realizá-los? E, embora vocês não vejam onde eles estão no momento, eles jamais estão tão distantes a ponto de não poder alcançá-los. [...] Vocês, ultimamente, não viram muitas dificuldades superadas, e tantas obras improváveis realizadas que, assim pensamos, elas silenciam a descrença para sempre? Mas se isso tudo não aquieta vocês--pois a tristeza e o descontentamento são paixões incontroláveis--, lembre-se, pelo menos, disso; suponha que o que vocês mais temem aconteça, ainda assim tudo deve ficar bem com todos os santos; a sua vez logo chegará; e todos nós habitaremos junto com Cristo, onde vocês não mais sentirão falta de seus amigos e ministros. E quanto ao pobre mundo, deixado para trás, e cujo estado de irregenerado os leva a sofrer, considere isto: por que o homem deve achar que é mais misericordioso que Deus? Ele não se interessa mais que nós pela igreja e pelo mundo? [...] Há uma época oportuna para o julgamento e para a misericórdia também. [...] Confesso que apenas podemos extravasar nossa dor por nossas congregações abandonadas, e não fica bem para nós fazer vir à luz a indignação de Deus. [...] Concluo, portanto, que, independentemente do que isso representa para os que são deixados para trás, ainda assim a partida dos santos, para eles mesmos, é geralmente oportuna.

 

VII

Outra maravilha desse descanso é esta: como ele é oportuno, então é um descanso apropriado, apropriado às naturezas, aos desejos [e] às necessidades dos santos.

À natureza deles. Se a apropriabilidade não cooperar com a maravilha, então as melhores coisas podem ser ruins para nós; pois é o que torna as coisas boas em si boas para nós. Quando escolhemos nossos amigos, nós muitas vezes ignoramos o mais excelente para escolher o mais apropriado. Nem todo bem concorda com qualquer natureza. Viver ao ar livre, sob os raios quentes do sol, é excelente para o homem, porque é apropriado; mas o peixe, que tem outra natureza, prefere outro elemento; e aquilo que para nós é muito magnífico tornar-se-ia rapidamente destrutivo para esse animal. [...] Bem, aqui temos a associação da apropriabilidade com a maravilha; a nova natureza dos santos é apropriada ao espírito deles para esse descanso; e, na verdade, a santidade deles não passa de uma faísca retirada desse elemento, a qual, por intermédio do Espírito de Cristo, é inflamada no coração deles, a chama da qual, por mais cuidadosa que seja quanto a sua origem divina, sempre levanta a alma às alturas e tende a pô-la no lugar de onde ela vem. Ela trabalha em direção a seu próprio centro e nos deixa inquietos até que ali descansemos. O ouro e a glória terrena, as coroas e os reinos temporais não podem ser um descanso para os santos. Da mesma forma que não podem ser redimidos com um preço tão aviltante, também eles não são revestidos com uma natureza tão aviltante. [...] Assim como Deus receberá deles uma adoração espiritual, apropriada a seu ser espiritual, ele também lhes dará um descanso espiritual, apropriado à natureza espiritual de seu povo. Assim como os espíritos não têm substância carnal, também eles não se deleitarão com prazeres carnais; isso seria muito vil e grosseiro para eles. [...] Um céu cheio do conhecimento de Deus e de Cristo; uma agradável complacência nesse amor mútuo; um regozijo eterno no gozo de nosso Deus; um louvor eterno diante de sua suprema exaltação; esse é o céu para o santo, um descanso espiritual para uma natureza espiritual. [...] Se nossa natureza não fosse, de algum modo, divina, o desfrutar da verdadeira natureza divina não seria, para nós, um descanso apropriado.

É apropriado ao desejo dos santos: pois o desejo deles estará em conformidade com a natureza deles; e o descanso deles estará em conformidade com o desejo deles. Na verdade, temos agora uma natureza mista; e de princípios contrários surgem desejos contrários; e assim como eles são carne, eles têm desejos da carne; e eles também têm desejos pecaminosos [...]. Esses desejos não são os desejos apropriados a esse descanso, nem os acompanharão nesse descanso. [...] Mas esse descanso é apropriado aos desejos de nossa natureza renovada, os que os cristãos comumente têm. Embora nosso desejo continue incorrupto e mal orientado, negá-los, sim, destruí-los, é uma piedade muito maior que satisfazê-lo; mas aqueles que são espirituais foram plantados pelo Senhor, e ele certamente os regará e efetuará o crescimento. É tão grande o trabalho de fazê-los crescer em nós para, depois disso tudo, definharem e desaparecerem? [...] Ele estimulou nossa fome e sede por justiça para que ele pudesse nos tornar plenamente felizes. Cristão, esse é um descanso segundo seu coração; ele contém tudo que seu coração pode desejar; aquilo que você anseia, tudo pelo que você orou e trabalhou, ali você encontrará tudo isso. Você prefere ter Deus em Cristo que todo o mundo; oras, ali você o terá! O que você não daria para ter certeza do amor do Senhor? Oras, ali você terá certeza plena, sem a menor dúvida. Não, agora seus desejos não conseguem alcançar a altura do que você deve obter ali. [...] Esta é uma vida de desejo e de oração, mas aquela será uma vida de satisfação e de alegria. [...] Ó! Aqueles pecadores também considerariam que ver a Deus não lhes proporcionará uma alegria apropriada aos seus desejos sensuais; portanto, a sabedoria deles é esforçar-se para ter desejos apropriados à verdadeira felicidade e direcionar seu navio para o porto certo, uma vez que percebem que não podem trazer o porto para seu navio.

O descanso é muito apropriado às necessidades dos santos como também a sua natureza e aos seus desejos. Ele tem tudo que eles verdadeiramente desejam. [...] É de Cristo e de sua santidade que eles mais precisam, e eles serão aqui supridos principalmente com isso. [...] A chuva que a oração de Elias procurava não era mais oportuna após três anos de seca que esse descanso será para a alma sedenta. [...]

 

VIII

Outra maravilha de nosso descanso será esta: de que ele será absolutamente perfeito e completo; e isso tanto na sinceridade quanto na universalidade dele. Ali, teremos alegria sem tristeza, e descanso sem cansaço. Como não há corruptibilidade alguma em nossas bênçãos, também não haverá sofrimento algum em nosso consolo. Não há nenhuma dessas ondas naquele porto, ondas essas que agora nos carregam para cima e para baixo. [...] Haverá um aperfeiçoamento universal de todos os nossos talentos e poderes; e embora a parte positiva seja a mais doce e a que tira a outra após surgir, como o nascer do sol elimina a escuridão; no entanto, a parte negativa não deve ser desprezada, nem mesmo nossa liberdade, de tantas e grandiosas calamidades. [...]

Ele exclui totalmente o pecado, tanto o pecado original, como o da natureza; tanto o atual como o da cidadania; pois ali não entra nada que o avilte, nem que produza abominação, nem que seja mentira. Quando eles estiverem lá, os santos serão realmente santos. Aquele que os lavará com o sangue de seu coração, em vez de fazê-los sofrer por entrar impuros, garantirá com perfeição que isso aconteça; aquele que se encarregou para presenteá-los a seu Pai, "sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas sant[os] e inculpáve[is]" (Ef 5.27), certamente realizará o que prometeu. [...] Sei que se você tivesse opção de escolha, certamente escolheria ficar livre do pecado que tornar-se herdeiro do mundo todo. Oras, espere até aquele momento, e seu desejo será cumprido: aquele coração duro e aqueles pensamentos vis, que se deitam e se levantam com você, que o acompanham em todas suas responsabilidades, que você não con-segue deixar para trás, da mesma forma que também não consegue deixar a si mesmo para trás, serão todos deixados para trás para todo o sempre. Eles podem o acompanhar até a morte, mas não podem dar um passo adiante desse ponto. O seu entendimento jamais será perturbado pelas trevas: ignorância e erro são incompatíveis com essa luz. Agora você caminha como um homem que segue adiante à luz do crepúsculo, sempre com temor de perder seu caminho; [...] mas, ali, toda essa claridade será dispersa, e nosso entendimento cego será totalmente clarificado, e não mais teremos dúvidas quanto ao nosso caminho. Saberemos qual era o lado correto, e qual era o errado; o que era a verdade, e o que era o erro. [...] O que não daríamos para ver todas as partes obscuras das Escrituras tornarem-se evidentes, ver todas as aparentes contradições harmonizadas! Oras, quando a glória retirar o véu de seus olhos tudo isso será compreendido em um momento; naquele momento, perceberemos claramente todas as controvérsias sobre a doutrina ou a disciplina, assuntos que agora nos deixam perplexos. O mais simples cristão é divinamente aperfeiçoado ali, mais que qualquer um pode ser aqui. [...] Quando nossa ignorância for perfeitamente curada, então seremos homens apaziguados e resolvidos; ali, nosso opróbrio será retirado de nós, e não mais mudaremos nosso julgamento. [...] Ó! Aquele dia alegre que se aproxima, dia em que o erro desaparecerá para sempre; em que nosso entendimento for cheio de Deus mesmo, cuja luz não deixará treva alguma em nós! Sua face será a Escritura em que leremos a verdade; e ele mesmo, em vez de mestres e conselheiros, aperfeiçoará nosso entendimento e nos familiarizará com ele, a verdade perfeita. Não haverá mais erros, nem escândalo para os outros, nem inquietação em nosso espírito; nem zelo equivocado por causa da falsidade; pois não mais haverá pecado em nosso entendimento. Há muitos homens piedosos aqui que, em seu zelo equivocado, são meios para o engano e a perversão de seus irmãos e, quando vêem seu próprio erro, já não sabem dizer como esclarecê-los; mas, ali, nós todos agiremos de acordo com a única verdade, ao ser um nele que é essa verdade.

E descansaremos de todos os pecados de nossa compreensão, e de nossos desejos, e de nossas emoções, e de nossa fala. Não mais manifestaremos esse princípio rebelde, que ainda nos afasta de Deus. Sem dúvida, não mais seremos oprimidos com o poder de nossas corrupções, tampouco seremos envergonhados com sua presença; não mais seremos atormentados pelo orgulho, pelas paixões, pela indolência, pela insensatez, nada disso entrará em nós; não estranharemos a Deus nem às coisas de Deus; não haverá indiferença em nossas emoções, nem imperfeição em nosso amor; não haverá caminhar acidentado, nem entristeceremos o Espírito; não haverá ações escandalosas, nem conversas impiedosas: descansaremos para sempre disso; ali, nosso entendimento receberá a luz da face de Deus, como a lua cheia recebe a luz do sol, quando a terra não se interpõe entre eles; ali, nossos desejos corresponderão ao desejo divino, como a face corresponde à face no espelho; e esse mesmo desejo divino será nossa lei e regra e jamais nos desviaremos dele. [...]

 

IX

É o descanso perfeito do sofrimento. Quando a causa desaparecer, o efeito cessa. Nossos sofrimentos não passavam de conseqüências de nosso pecado, e, ali, os dois desaparecerão juntos. [...]

Descansaremos de nossas dúvidas e de nossos medos desconcertantes; não mais se dirá que as dúvidas são como o cardo, uma erva daninha, que crescem em bom solo; elas, agora, serão arrancadas e não mais perturbarão a alma graciosa. Não precisaremos mais de tantos sermões, livros e marcas e sinais para esclarecer a pobre alma que duvida: o gozo mesmo desse amor soluciona, agora, suas dúvidas para sempre. [...]

Descasaremos de todo aquele sentimento do desprazer de Deus, nosso grande tormento aqui, ao sermos tragados por aquele oceano de amor infinito, quando nossos sentidos nos convencerão de que a fúria não habita em Deus; e ele, embora por um breve momento esconda sua face, receber-nos-á e abraçar-nos-á com sua eterna compaixão. [...]

Descansaremos de todas as tentações de Satanás, por meio das quais ele perturba nossa paz. Que tristeza para o cristão, embora não ceda à tentação, ainda ser importunado para negar a seu Senhor; que tal pensamento seja lançado em seu coração; que ele não consiga fazer nada do que é bom, mas Satanás ainda o convence a não fazê-lo, desviando a atenção dele, ou desencorajando-o! Que tormento e que tentação ter esses movimentos estimulados em sua alma! [...] Algumas vezes, pensamentos cruéis em relação a Deus, e outras vezes, pensamentos que desvalorizam Cristo; algumas vezes, pensamentos que põem em dúvida as Escrituras e, outras vezes, pensamentos ofensivos em relação à providência; algumas vezes, ser tentado para voltar-se às coisas presentes e, outras vezes, brincar com as iscas do pecado; algumas vezes, aventurar-se nos deleites da carne e, outras vezes, mergulhar no ateísmo insípido; especialmente quando conhecemos a infidelidade de nosso coração, pois este, como o material inflamável e a pólvora, está pronto a propagar o fogo, assim que uma dessas faíscas cai sobre ele. Como o pobre cristão, quando sente esses movimentos, vive em contínua inquietação! Mas ainda mais por seu coração ser o solo para essa semente, e a matriz extremamente frutífera desses frutos; e, acima de tudo, por meio do medo, com receio de que eles por fim prevaleçam, e esses movimentos amaldiçoados devem procurar seu consentimento. Mas, aqui, temos nosso conforto; quando não nos sustentamos por nos-sa própria força e não deveremos ser incriminados com nada disso; assim, quando o dia de nossa libertação chegar, descansaremos completamente dessas tentações. Satanás será aprisionado; e o tempo de tentação chegará ao fim. [...] Agora, andamos em meio a seus laços e corremos o risco de ser envolvidos por seus métodos e vilezas; mas, ali, estaremos muito acima de seus laços e fora do alcance de sua voz cheia de fascínios sedutores. Ele tem poder aqui para nos tentar no deserto, mas ele não entrará na cidade santa. [...] Aqui, não há mais trabalho para Satanás. [...]

Descansaremos também de todas nossas tentações a que somos submetidos pelo mundo e pela carne, bem como por Satanás; e elas são incontáveis, e seu peso, se não olhássemos para a graça que nos sustenta, seria intolerável. [...] Para nós, todos os sentidos, to-dos os membros, todas as criaturas, todas as misericórdias e todas as responsabilidades são um laço. Mal podemos abrir os olhos, e já estamos em perigo. Se consideramos os outros acima de nós, corremos o risco da inveja; se os consideramos inferiores a nós, corremos o risco do desdém. Se o que vemos são prédios suntuosos, casas agradáveis, honras e riquezas, corremos o risco de nos deixar levar pelos desejos cobiçosos; se o que vemos são os trapos e a pobreza dos outros, corremos o risco da inclemência e dos pensamentos em que aplaudimos a nós mesmos; se o que vemos é a beleza, essa é uma isca para a cobiça; se o que vemos é a deformidade, essa é uma isca para o desprezo e a aversão. Mal podemos ouvir uma palavra, e já ela representa um motivo para a tentação. E, por essa passagem, muito rapidamente relatos difamadores, zombarias vis, falas devassas insinuam-se em nosso coração! Como nosso apetite pela tentação é forte e dominante, e como isso exige vigilância firme e constante! Temos graça e beleza? Que combustível para o orgulho. Temos alguma deformidade? Que oportunidade para o lamento. Temos bom raciocínio e facilidade para aprender? Como é difícil não se orgulhar disso! Impulsionar a nós mesmos; caçar aplauso; desprezar nossos irmãos; desgostar-se da simplicidade que há em Cristo: tanto na essência quanto no estilo das Escrituras, na doutrina, na disciplina, na adoração e nos santos; prestigiar um culto pomposo, carnal e ilusório a Deus e exaltar a razão acima da fé. Somos pessoas cujas mentes são superficiais e incultas e cujos membros são insuficientes? Como somos aptos a desprezar o que não temos e a subestimar o que não conhecemos; e a errar confiantes graças a nossa ignorância: e se a presunção e o orgulho se fizerem presentes, tornamo-nos, com o pretexto da santidade e da verdade, zelosos inimigos da verdade e principal perturbador da paz na igreja. Somos homens eminentes e ocupamos cargos de autoridade? Quão forte é nossa tendência de diminuir nossos irmãos, de abusar de nossa confiança, de impulsionar a nós mesmos, de fundamentar-nos em nossa honra e privilégios; de ignorar a nós mesmos, a nossos irmãos pobres e ao bem de todos: como é difícil devotar nosso poder à glória do Senhor, de quem o recebemos; como somos propensos a tornar nosso desejo nossa lei e a eliminar toda a alegria dos outros, tanto religiosos quanto leigos, por intermédio de nossas malditas regras e detestáveis modelos que apenas buscam satisfazer nosso próprio interesse e diretriz! Somos inferiores e vassalos? Como somos propensos a julgar a importância dos outros e tomar a liberdade de apresentar todas suas ações no tribunal de nosso incompetente julgamento; e a censurá-los, e a difamá-los, e a murmurar a respeito das medidas adotadas! Somos ricos e não somos muito exaltados? Somos pobres e não estamos descontentes e tornamos nossas necessidades um pretexto para roubar a Deus em todo seu serviço? [...]

Mas para sempre seja abençoado o amor onipotente que nos salva disso tudo, e que faz com que nossas restrições e dificuldades resultem nos benefícios da glória de sua graça salvadora. [...] No céu, o perigo e os problemas ficam para trás; não há nada exceto o que promove nossa alegria. [...]

Descansamos das tentações, como também dos abusos e das perseguições que sofremos nas mãos de homens perversos. Não mais seremos desprezados, escarnecidos, aprisionados, banidos, massacrados; as orações da alma derramadas diante do altar de Deus serão respondidas, e Deus vingará o sangue deles sobre os que habitam na terra. Este é o tempo em que os santos receberão a coroação com espinhos, os tapas e as cuspidas; aquele é o tempo para sermos coroados com glória. [...] Agora, devemos ser odiados por todos os homens por causa do nome de Cristo e do evangelho; depois, Cristo será admirado em seus santos que foram odiados desse modo. Agora, por não sermos do mundo, pois Cristo nos tirou do mundo, o mundo, portanto, realmente nos odeia; depois, por não sermos do mundo, pois fomos retirados de suas calamidades, o mundo, portanto, realmente nos admirará.. Agora, da mesma forma que odiaram a Cristo, eles também nos odiarão; depois, da mesma forma que honrarão a Cristo, eles também nos honrarão. [...] Quando a onda de perseguições cessar, e a igreja for chamada para sair do deserto, e a Nova Jerusalém descer do céu, e a misericórdia e a justiça forem totalmente glorificadas, então não mais sentiremos a fúria deles. [...] Deixamos tudo isso para trás de nós, assim que entrarmos na cidade de nosso descanso; os nomes lollardista, huguenotes, puritanos não mais serão utilizados; a inquisição da Espanha será ali condenada; os estatutos dos "Seis Artigos" serão ali repelidos; a lei de haereticis comburendis [os hereges devem ser queimados] mais justamente executada; a data do interim [interino] ali se expiará; o consentimento e a obediência não mais serão estimulados; o silêncio e o aprisionamento serão ali mais que suspensos; não há bispos nem cortes do chanceler; não haverá visitas nem julgamentos da Alta Comissão; nem censuras quanto à perda de membros, não haverá a prisão perpétua, nem o banimento. Cristo não será ali vestido com um manto suntuoso nem ficará com os olhos vendados; [...] tampouco a verdade estará revestida com os mantos da mentira, nem será influenciada por aquilo que ela contradiz mais diretamente; não teremos feridas que levem aos cismas, nem se verá um santo sangrando; tampouco nossos amigos nos influenciarão, embora nos confundam com seus inimigos. Ali, não há nada desse trabalho louco e cego. [...] Até aquele momento, guarde sua alma com paciência; amarre todo opróbrio como uma coroa para nossa cabeça; considere-o como riquezas maiores que os tesouros humanos; considere motivo de alegria quando enfrentar tribulações. Você, nesses momentos, vê que Deus pode libertar-nos; mas isso não é nada comparado com nossa conquista final. Ele recompensará com tribulação os que lhe causaram problemas; e você que foi atormentado receberá o descanso com Cristo. [...]

Descansaremos também de nossas divisões e das discussões, nada cristãs, uns com os outros. [...] Não haverá disputas, pois, ali, não encontramos nada desse orgulho, ignorância ou qualquer outra corrupção. Paulo e Barnabé estão, agora, totalmente reconciliados. Ali estão eles, cada um deles não é afetado por seu próprio entendimento, nem apaixonado com a questão de suas próprias idéias, mas todos admiram a perfeição divina e estão apaixonados por Deus e uns pelos outros. Conforme o sênior Gryneus escreveu a seu amigo: "Se não mais o vir na terra, ainda assim nós nos encontraremos ali, onde Lutero e Zuínglio desfrutam agora de boa concordância de opinião" [...] Há plena reconciliação entre sacramentalistas e ubiqüistas; calvinistas e luteranos; reformistas e contrareformadores; conformistas e não-conformistas. Antinomianos e legalistas não são termos conhecidos ali; presbiterianos e independentes estão em perfeita concordância. Não há disciplina criada por política de Estado, nem qualquer licenciosa regra popular; não há governo, exceto aquele de Cristo! [...] E não é uma vergonha verificar que nosso rumo hoje é tão contrário? [...] Não basta o mundo inteiro ser contra nós, mas também precisamos ficar uns contra os outros? Será que já passou por minha mente a idéia de ouvir cristãos reprovarem e desprezarem cristãos? E homens que professam o temor a Deus, mas que demonstram poucos escrúpulos em censurar, vilipendiar, desprezar e envergonhar uns aos outros? [...] Deus meu! Se o julgamento já se perverteu, e o erro influencia a faculdade suprema, para onde os homens vão, e o que eles farão? Não! O que eles não farão? Ó que tremendo instrumento para Satanás é a consciência mal-orientada! [...] Hoje, eles podem ser ortodoxos e unânimes e estar unidos em amor, mas, talvez, dentro de poucas semanas já estejam divididos e em amarga oposição por causa de sua paixão por questões que não tendem a edificar. [...] Ó alegre dia do descanso dos santos na glória! Quando, da mesma forma que teremos um só Deus, um só Cristo, um só Espírito, também teremos um só julgamento, um só coração, uma só igreja, uma só ocupação para todo o sempre! Quando não mais teremos circuncisão e incircuncisão, nem judeus e gentios, nem anabatistas, pedobatistas, congregacionalistas, separatistas, independentes, presbiterianos ou episcopais, mas apenas Cristo, e Cristo tudo em todos. Ali, não duvidaremos de nossa comunhão, nem das ordenanças da adoração divina; ali não teremos alguém a favor do cantar hinos, e outros contra; mas todos os que foram veementes na discórdia ficarão unidos na abençoada concórdia e formarão um melodioso coral. [...]

Descansaremos de todas as horas dolorosas e dos pensamentos tristes que agora nos assolam por que participamos com nossos irmãos de seus flagelos. Ai de nós! Se não tivéssemos nada que nos perturbasse, ainda assim o coração poderia deixar de lado a tristeza que existe nas vibrações dos sofrimentos da igreja? A igreja na terra não passa de um hospital. Qualquer que seja a direção que tomamos, escutamos lamentos, e onde que quer que repousemos nosso olhar, vemos coisas lamentáveis e aflição. [...] Quem não chora quando tudo isso sangra? E como as tristezas de nossos amigos são as nossas, também a libertação de nossos amigos será a nossa. [...] E não será mais confortável vê-los perfeitos que, agora, vê-los feridos, fracos, doentes e aflitos? [...] Nosso dia de descanso livrará a nós e a eles disso tudo. [...] Ó, as cenas tristes e de partir o coração que vi nesse curto espaço de tempo de quatro anos! Nessa guerra [...] todos os meses, todas as semanas víamos ou recebíamos notícias de sangue. Certamente, não há nada disso no céu. [...] Nossa tarja negra e vestes de luto se transformarão, ali, em vestes brancas e em trajes de alegria. Meu coração mal cabe em si quando penso nesse, e naquele, e naquele outro amigo cristão que foi morto ou que partiu! O quanto esse mesmo coração se alegrará quando vir todos eles vivos e glorificados! [...] Mas a tristeza maior é para nosso espírito, ao ver as misérias espirituais de nossos irmãos; [...] ao ver nossos amigos mais queridos e íntimos se afastar da verdade de Cristo; [...] ao ver muitas pessoas próximas de nós negligenciar a Cristo e a sua alma! Ó! Que dor contínua enche nosso coração, dia a dia, com todas essas cenas tristes e pensamentos sombrios! E o dia em que descansarmos disso tudo não será um dia abençoado? [...] Que coração não se fere ao pensar nas longas desolações da Alemanha? [...] Veja os quatro anos de derramamento de sangue na Inglaterra, uma terra próspera agora em ruínas! [...] Veja a Escócia, veja a Irlanda; veja isso em quase todos os lugares! [...] Abençoado seja aquele dia que se aproxima, quando nossos olhos não mais verão essas cenas, nem nossos ouvidos ouvirão quaisquer dessas notícias! [...]

Descansaremos de todos nossos sofrimentos pessoais--quer naturais, quer costumeiros, quer extraordinários -- provenientes da mão de Deus que nos aflige. E isso, embora pareça pouca coisa para aqueles que vivem em constante conforto e sobejam com todo tipo de prosperidade para a alma afligida diariamente, assim acho, deve tornar aprazível os pensamentos de antecipação do céu. [...] E como nossos sentidos não passam de entradas para o pecado, também se tornam entrada para nossa tristeza. O pesar se insinua através de nossos olhos e ouvidos e em quase todos os lugares. [...] O medo nos consome e obscurece nosso deleite, da mesma forma que a geada destrói os tenros botões de flor. Os cuidados nos consomem e se alimentam de nosso espírito, da mesma forma que o sol escaldante faz murchar as flores delicadas. [...] Que peça delicada é esse nosso corpo de pó! Que frasco frágil este que carregamos; e quantos milhares de perigos ele enfrenta, e como é difícil restaurá-lo após ele se quebrar! [...] Acho que esse descanso, o que quer que ele represente para uma pessoa saudável e forte, parece aceitável para mim que, nesses dez ou doze anos, praticamente não tive um dia sequer sem que sentisse algum tipo de dor. Ó noites e dias extenuantes; ó debilidade apática e inútil; ó brumas do trabalho agitado; ó medicamentos fastidiosos e repugnantes, isso sem levar em consideração a expectativa diária de que o pior aconteça! Não seria agradável descansar disso tudo? [...] Ó abençoada tranqüilidade daquela região onde não há nada além da doce e incessante paz! [...] Nossa vida será apenas uma alegria, pois nosso tempo será transformado em apenas uma eternidade, [...] pois em breve há de acontecer, e o Senhor, naquele dia, nos dará descanso de nossos sofrimentos, e de nossos medos, e da dura servidão na qual servimos. O pobre não mais ficará cansado de seu incessante trabalho: não mais usará o arado, o cesto de junco, a foice, o foicinho; o servo não mais se inclinará ao senhor; nem o arrendatário ao dono da terra; não haverá fome, nem sede, nem frio, nem nudez, nem geada cortante, nem calor abrasante. [...] Não mais haverá separação de amigos, nem se ouvirá a voz de lamento em nossa casa; nem rompimento de amizades, nem desigualdade nem qualquer problema em nossos relacionamentos. [...] Ali, os que foram "comprados pelo Senhor retornarão e virão a Sião com cânticos, e alegria eterna estará sobre eles: eles obterão alegria e contentamento, e o sofrimento e o lamento fugirão de nós". Espere, portanto, um pouco mais, ó minha alma; agüente as enfermidades de seu tabernáculo terreno; [...] só um pouco mais; o som dos pés de seu Redentor está à porta, e a sua libertação mais próxima que a de muitos outros. E você que muito chorou, na linguagem do sublime poeta:

O sofrimento era toda minha alma; mal acreditei

Até que o pesar contou-me claramente que vivi,

sentirá, naquele momento, que Deus e a alegria são toda sua alma, e seu gozo, e a libertação de todo esse sofrimento fará com que saiba, de forma mais sincera e sensível, que viveu, e agradecerá por isso com seu louvor eterno.

Descansaremos de todos os problemas e as dores de nossa responsabilidade. O magistrado consciencioso, agora, brada: "Ó! O fardo que está sobre mim!". Os pais conscienciosos, que conhecem a preciosidade da alma de seus filhos, e os constantes esforços exigidos para a educação piedosa deles, bradam: "Ó! Esse fardo!". Os ministros conscienciosos, quando lêem suas responsabilidades e vêem seu feitio; quando eles tentaram por algum tempo determinar o que se deve estudar, pelo que orar e o que pregar, [...] indo de casa em casa, e de alguém próximo a alguém próximo, e suplicar a eles, noite e dia, com lágrimas, e, depois disso tudo, ser odiado e perseguido por assim fazer, não é de admirar que brademos: "Ó! Esse fardo!". [...] E, raras vezes, um ministro vive tanto a ponto de ver o amadurecimento de seu povo; mas um ara e planta, outro rega, e um terceiro colhe e recebe o crescimento. [...] Instruir o pecador maduro e inexperiente, convencer o teimoso, considerado sábio pelo mundo, persuadir um patife intencionalmente obstinado, to-car um coração de pedra em seu âmago, fazer uma rocha chorar e tremer, apresentar Cristo de acordo com nossa necessidade e sua maravilha, confortar a alma que Deus deixa abatida, esclarecer dúvidas difíceis e obscuras, opor-se, com argumentos convincentes, a todos os opositores, honrar o evangelho com conversas exemplares, quando multidões apenas estão à espera de nosso vacilo: "Ó! Quem é apto para todas essas coisas? [...] Assim, todo cristão consciencioso brada: "Ó! Esse fardo! Ó minha fraqueza que o torna muito pesado!". Mas nosso descanso que está por vir nos aliviará desse fardo. [...]

Por fim, descansaremos de todas nossas tristes emoções que, necessariamente, acompanham nosso afastamento de Deus. [...] Não mais olharemos em nosso armário por darmos pela falta de nosso tesouro; nem olharemos em nosso coração por darmos pela falta de Cristo; tampouco o procuraremos de ordenança em ordenança, nem perguntaremos às pessoas que encontramos se sabem onde nosso Deus está; nosso coração não mais ficará na mão, nem nossa alma suspirará sempre que assim pedirmos, mas tudo se completa em um gozo pleno e abençoado. [...]

 

X

A última jóia em nossa coroa, e abençoado atributo desse descanso, é de que ele é um descanso eterno. Essa é a coroa de nossa coroa; sem ela tudo é, comparativamente, pequeno, ou nada. O pensamento mesmo de abandoná-lo amargaria todas as nossas alegrias; e ainda nos feriria ainda mais por causa das maravilhas singulares às quais precisaríamos renunciar. [...] A mortalidade é a desgraça de todos os deleites terrestres. Pensar que ela deve, em breve, sacrificar nossa vida atual faz com que nosso viver--se não fosse pela referência que tem com Deus e com a eternidade--tenha pouco valor. [...] Certamente, se não fosse pela eternidade, consideraria o homem uma obra tola; e toda a sua vida e honras desprezíveis; [...] uma sombra vã. [...] Não consigo valorizar nada que terá um fim, exceto se este levar àquilo que não tem fim; ou, por se originar naquele amor que não tem início nem fim. Falo isso a partir de minhas meditações. [...] O que devo dizer quando falo sobre a eternidade? Será que meus pensamentos, bastante superficiais, podem conceber tudo que essa expressão sublime contém? Ser eternamente abençoado, e muito abençoado! Oras, certamente isso, se é que algo é semelhança de Deus: a eternidade é uma parte da infinitude. [...] Assim, ó minha alma, deixe ir seus sonhos referentes aos prazeres atuais e livre-se de seu apego à terra e à carne. Não tema entrar naquele estado em que seus temores cessarão para sempre. Sente-se, [...] e reflita sobre essa eternidade. Estude com freqüência; estude de forma detalhada esta palavra: eternidade; e, quando tiver aprendido totalmente essa palavra, você jamais examinará livros de novo! O quê? Viver e jamais morrer? Regozije-se e regozije-se para sempre! Ó que doces palavras são estas: "nunca e sempre". [...] Ó que a graciosa alma estude cheia de fé esta palavra: eternidade: acho que ela a reavivaria em sua mais profunda agonia! Senhor, devo viver para sempre? Então, também amarei para todo o sempre. Minhas alegrias precisam ser imortais; e meus agradecimentos também não devem ser imortais? Certamente, se jamais perder minha glória, meus louvores jamais cessarão. [...] Se o Senhor aperfeiçoar e perpetuar minha glória, da mesma forma que serei dele, e não de mim mesmo, também minha glória será sua glória; e como tudo brotou do Criador, também tudo será novamente devolvido ao Senhor; e a glória do Senhor realiza seu fim supremo em minha glória, também ela será minha, quando o Senhor me coroar com aquela glória que não tem fim. E ao "Rei eterno, o Deus único, imortal e invisível, sejam honra e glória para todo o sempre. Amém" (1Tm 1.17).

E, assim, esforcei-me para mostrar a você um vislumbre da glória que se aproxima: mas, ó, como minhas palavras ficam muito aquém de sua maravilha! Leitor, se você for um crente sincero e humilde, e se espera com desejo ardente e com dificuldade por esse descanso, brevemente verá e sentirá a verdade disso tudo. [...] Nesse meio tempo, permita que ela realmente acenda seus desejos, e lute, e continue em seu caminhar, pois, certamente, você tem um prêmio diante de você. Deus não zombará de você: não zombe de você mesmo, não traia sua alma, ao protelar ou ao perder tempo, e tudo isso será seu. [...]