Capítulo 3 O QUE ESSE DESCANSO PRESSUPÕE Para uma compreensão ainda mais clara desse descanso, você precisa saber que há algumas coisas necessariamente pressupostas nele.
Todas estas coisas são pressupostas nesse descanso:
A pessoa em movimento, em busca de descanso. O homem aqui está a caminho; anjos e espíritos glorificados já têm isso; e os demônios e os condenados não têm nenhuma esperança; um fim para o qual caminha para seu descanso; cujo fim deve ser suficiente para seu descanso; caso contrário, esse descanso, quando obtido, seria uma ilusão para o homem que para lá caminha. Esse descanso só pode ser Deus, o bem maior. Aquele que pega qualquer outra coisa para sua felicidade, já deu o primeiro passo para sair desse caminho. O principal pecado para a condenação é tornar qualquer outra coisa, que não Deus, nosso fim ou nosso descanso. E o primeiro verdadeiro ato salvador é escolher apenas Deus como nos-so fim e felicidade.
Para esse fim, pressupõe-se certa distância; caso contrário, não haveria nenhum movimento em sua direção. Essa triste distância é fato penoso para toda a humanidade desde a queda; basicamente foi nosso Deus que perdemos, e fomos excluídos de sua graciosa presença. Embora haja comentários de perdermos apenas nossa felicidade terrena e temporal, tenho certeza de que a queda foi nossa separação de Deus, e foi a ele que perdemos e, por essa razão, dizemos estar sem ele no mundo. [...] Pois o pecado não destruiu nosso ser, nem nos tirou o movimento; mas aniquilou a retidão e o bem-estar de nosso movimento. Quando Cristo vem com a graça regeneradora e salvadora, ele não encontra nenhum homem sentado e imóvel, uma vez que todos estão a caminho da ruína eterna, até que ele, pelo convencimento, os traz antes de mais nada a uma parada; e, pela conversão, faz com que, primeiro, o coração e, depois, a vida deles se voltem sinceramente para ele. [...]
Aqui se pressupõe o conhecimento do fim verdadeiro e supremo e de sua maravilha, bem como da intenção séria de alcançar esse fim. Pois o movimento da criatura racional prossegue: um fim desconhecido não é um fim; isso é uma contradição. Não podemos ter como fim aquilo que desconhecemos; tampouco nosso principal fim pode ser aquilo que não conhecemos, ou algo que não consideramos como o bem supremo. Um bem desconhecido não faz mover o desejo nem o esforço; portanto, sempre que não se reconhece que Deus é verdadeiramente esse fim, nem que o Senhor contém todo o bem, não há a possibilidade de se obter, de uma forma comum e conhecida, nenhum descanso, quaisquer que sejam as formas pelas quais Deus mantém esse fim em segredo.
Aqui se pressupõe não apenas uma distância desse descanso, mas também o verdadeiro conhecimento dessa distância. Se um homem perdeu seu caminho e não o conhece, ele não procura retornar; se ele perde seu ouro, e não o conhece, ele não o busca. Portanto, talvez eles nunca saibam que estão sem Deus e, ainda talvez, não tenham se deleitado no Senhor; e, desse modo, eles nunca poderiam saber que estavam natural e realmente no caminho para o inferno, e que ainda não conhecem o caminho para o céu. [...] Esse é caso lamentável de milhares de pessoas, e a razão pela qual apenas poucos obtêm esse descanso: eles não podem ser convencidos nem tornar-se sensíveis a ele, pois eles, quanto à posição, estão distante desse caminho e, quanto à prática, são contrários a ele. Eles perderam seu Deus, sua alma, seu descanso, e não conhecem nada disso nem acreditam naquele que lhes disser isso. Quem viajaria para um local se achar que já está lá, ou quem procuraria algo que sabe que não perdeu?
Aqui também se pressupõe uma causa superior para o movimento e uma influência proveniente daí, ou, caso contrário, todos ficaríamos imóveis e não daríamos um passo adiante em direção ao nosso descanso; da mesma forma que as pequenas engrenagens de um relógio de corda não se movem se a mola, ou o primeiro motor, for retirada. Esse primum movens [primeiro motor] é Deus. [...] Se Deus não nos mover, não podemos nos mover; portanto uma parte muito necessária de nossa sabedoria cristã refere-se ao manter nossa subordinação a Deus e nossa dependência nele; e, ainda, estar no caminho onde ele caminha, e naquele caminho onde seu Espírito mais usualmente se move. Acautele-se para não ficar separado de Deus, nem afastar-se dele, nem relaxar em suas expectativas diárias da ajuda renovada, nem ficar insensível à contínua influência e assistência do Espírito. Assim que você começar a confiar em seu estoque habitual de graça, a depender de seu próprio entendimento ou resolução para a responsabilidade e para o santo caminhar, isso quer dizer que você está em um perigoso estado de declínio. [...]
Aqui se pressupõe um princípio interno da vida na pessoa. Deus não move um homem como se este fosse uma pedra, mas faz isso primeiro ao lhe doar vida, ao não permitir que se mova sem Deus, mas, por meio disso, ao qualificá-lo para que se mova por si, subordinado a Deus, o primeiro motor. Determinar qual a natureza des-sa vida espiritual é uma questão extremamente difícil. Se, como alguns acham (mas que considero um equívoco), for Cristo em pessoa e em essência, ou o Espírito Santo pessoalmente; ou, se, como outros distinguem (e desconheço em que sentido), for o Espírito Santo, mas não pessoalmente: quer seja por acidente, quer seja por qualidade, quer seja por substância espiritual, como a alma mesma; se for apenas um ato, uma disposição, ou um hábito, como geralmente se considera, quer seja um hábito infundido, quer seja adquirido por atos assíduos, aos quais a alma foi moralmente persuadida; quer seja um tanto distinto de um hábito, isto é, um poder, a saber, potentia proxima intelligendi, credendi, volendi, etc., in spiritualibus [o poder de entender as coisas próximas, o poder de crer nas coisas espirituais, o poder de querer etc.], o que alguns consideram como o mais provável -- muitas dessas dificuldades ocorrem, e serão dificuldades, apesar de a doutrina dos espíritos e das obras espirituais parecer tão obscura para nós, e isso sempre será assim enquanto o pó da mortalidade e da corrupção estiver em nossos olhos. Este é meu conforto: que a morte brevemente soprará este pó, e, naquele momento, isso e tantas outras coisas serão resolvidas. Nesse meio tempo, continuo cético e pouco conheço sobre toda essa doutrina dos espíritos e das obras espirituais, além daquilo que as Escrituras revelam claramente, como também creio que faremos muito bem em manter-nos próximos a sua linguagem.
Aqui se supõe um movimento real antes do descanso; o descanso é o fim do movimento: sem movimento não há descanso. O cristianismo não é uma profissão nem emprego sedentários; tampouco consiste de meros negativos [...]. Não fazer o bem não é o mal menor: sentar-se imóvel o fará perder o céu, como também o perderá se correr dele. [...] Sei que quando tivermos feito tudo, seremos servos inúteis; e ninguém que confie nos supostos méritos de suas obras pode ser cristão, no sentido apropriado; no entanto, aquele que esconde seu talento, receberá o salário de um servo indolente.
Aqui também se supõe o movimento exatamente como foi ordenado e direcionado para o fim; e não é todo movimento, todo trabalho e toda busca que trazem o descanso. Nem todos os caminhos levam a esse fim; mas aquele cuja bondade decreta o fim, decreta, por meio de sua sabedoria e de sua soberana autoridade, o caminho. Nossos próprios caminhos, inventados por nós mesmos, podem parecer mais sábios, mais agradáveis, mais atrativos e mais eqüitativos aos nossos olhos; mas apenas o decreto de Deus é que poderá abrir essa fechadura, e ele é a melhor chave para abri-la. [...] Cristo é a porta; o único caminho para esse descanso. Alguns jamais permitirão que nada mais seja chamado de o caminho, com receio de que ele se afaste de Cristo. A verdade é que Cristo é o único Caminho para o Pai; no entanto a fé é o caminho para Cristo; e a obediência ao evangelho, a fé e as obras, esse é o caminho que os que estão em Cristo devem percorrer. Há, como antes, muitas condições para a submissão a Cristo, mas não há nenhuma que atue em conjunção com ele; assim, só o caminho de Deus nos levará a esse fim e a esse descanso.
Aqui também se supõe o movimento, como o movimento corretamente ordenado, tão constante e firme para que se possa alcançar o fim. Se não pusermos força no arco, a flecha não alcança a marca; o mundo preguiçoso, que pensa muito, descobrirá, a um alto preço, isso um dia. Os que acham que menos trabalho poderia servir a esse fim reprovam a Cristo por nos fazer realizar tantas coisas. Aqueles que foram mais santos, cuidadosos e pacientes para alcançar a fé e a segurança acham, quando estão prestes a morrer, que realizaram muito pouco. Observamos diariamente os melhores cristãos, quando à beira da morte, arrependerem-se por sua negligência; mas jamais observei alguém se arrepender de sua santidade e de seu zelo. [...] Se o caminho para o céu não for mais árduo que o mundo imagina, então Cristo e seus apóstolos não conheciam o caminho, ou, então, eles nos enganaram. [...] Se alguma alma alcançar a salvação da forma comum, desleixada e fácil do mundo, então diria que esse caminho é mais curto que o que Deus, por meio das Escrituras, revelou aos filhos dos homens. [...] Deus conhece o caminho melhor que eles, e sua Palavra é o meio verdadeiro e infalível para descobri-lo.
Também vi essa doutrina ser ignorada com desdém por pessoas que dizem: "O quê? Você quer dizer que nós devemos trabalhar para alcançar o céu? Nossa obediência contribui para algo? Cristo já não fez tudo? Isso não o torna um Salvador incompleto? E isso não é o mesmo que pregar a Lei?". Em resposta a esses questionamentos, devo dizer o que representa pregar a Lei de Cristo; é pregar a obediência a Cristo. Cristo fez e fará toda a obra e, portanto, é o Salvador perfeito, mas, mesmo assim, deixa algo para que nós façamos. Ele pagou todo o preço e não deixou nada para que nós pagássemos; no entanto, ele jamais teve a intenção de que seu resgate nos pusesse em uma condição absoluta, imediata e pessoal em relação à glória, isso em relação à lei, e muito menos que tomássemos posse imediata dela [...]. Ele comprou a coroa para conferi-la apenas mediante a fé, aos que negam a tudo por ele, sofrem com ele, perseveram e vencem. [...] O que salva não é apenas a oferta do Salvador, mas o recebê-lo; não é apenas o sangue derramado de Cristo que salva plenamente, mas o lavar-se nesse sangue; tampouco Cristo nos leva para o céu em uma cadeira segura [...]. Nossa justiça, que a lei das obras exige e por meio da qual é satisfeita, está totalmente em Cristo, e sabemos que nem um grão dela está em nós; tampouco devemos ousar pensar em costurar juntas a justiça legal de Cristo e a nossa; ou seja, achar que nossas ações podem ser a menor parte da satisfação por nossos pecados, ou ter algum mérito inerente. Contudo, nós devemos cumprir pessoalmente as condições da nova aliança e, dessa forma, ter uma justiça pessoal e evangélica, ou jamais ser salvo pela justiça de Cristo; portanto, não diga que não se refere à obediência, mas a Cristo; pois é Cristo em uma forma de obediência. Como a obediência não dispensa Cristo, também Cristo não pode dispensar a obediência.
E esse movimento deve ser firme, como também [deve ser] constante; ou ele ficará aquém do descanso. Começar pelo Espírito e acabar pela carne, isso não levará os santos a alcançar seu fim. A certeza para a perseverança dos santos não torna inútil a admoestação para a constância; homens, tão santos quanto os melhores de nós, caíram [...]. Até mesmo os discípulos de Cristo receberam ordens para continuar no amor de nosso Salvador, e isso se alcançaria por meio do guardar seus mandamentos e do permanecer nele, e da permanência de sua Palavra neles, como também da permanência de Cristo neles. [...]
Pressupõe-se também que para a obtenção desse descanso é preciso ter um intenso desejo por ele. O movimento da alma não é aquele que pede violência ou coação--ninguém pode forçar esse movimento --, mas é algo natural, de acordo com nossa nova natureza. Como tudo se inclina a seu próprio centro, também a criatura racional é carregada em todo seu movimento, por meio do qual deseja alcançar seu fim. Esse fim é a primeira coisa a que se almeja, e a que mais se deseja, embora seja a última a ser obtida. Observe esse fim e acredite nele, seja você quem for; jamais houve uma alma que tenha conseguido tornar Cristo e a glória seu principal fim, nem que tenha alcançado o descanso com Deus, se seu desejo não estivesse depositado nele, e esse desejo estivesse acima de todas as demais coisas existentes no mundo. Primeiro, Cristo traz o coração da pessoa para o céu, e só depois a pessoa. [...] Todo aquele que verdadeiramente se deleitou em Deus por intermédio de Cristo mais que em todas as outras coisas do mundo alcançará esse descanso; e todo aquele que desejou ter qualquer outra coisa não o alcançará, a menos que Deus o transforme. É verdade que o que resta de nossa velha natureza enfraquecerá muito esse desejo e o obstruirá, mas jamais o vencerá. O movimento apaixonado de nossos desejos é, com freqüência, mais forte em relação às coisas inferiores e sensoriais; mas a vontade ou escolha deliberada, nosso desejo racional, é principalmente proveniente de Deus.
Finalmente, aqui se propõe a angústia e o cansaço em nosso movimento. Isso surge não de qualquer maldade na obra ou no caminho, pois o jugo de Cristo é suave; seu fardo, leve; e seus mandamentos, penosos, mas em virtude da oposição com a qual nos defrontamos, pois ainda restam em nossa natureza os princípios contrários, as fraquezas de nossa graça e, portanto, de nosso movimento. [...] E com que esforço e arquejo um homem fraco sobe aquela montanha que o homem saudável escala correndo e com facilidade. Todos nós, até mesmo os melhores, somos fracos. Uma profissão de fé que jamais se depara com essas dificuldades e dores é um triste sinal de um coração doente. Cristo, na verdade, libertou-nos das impossibilidades da aliança das obras e do fardo e jugo das cerimônias legais, mas não das dificuldades e dores da obediência ao evangelho. Nossa contínua distância do fim também causará alguma tristeza; pois o desejo e a esperança, ao implicar a ausência da coisa desejada e esperada, sempre implicam alguma tristeza por essa ausência; e tudo isso se dissipa quando tomamos a posse [...].
Portanto, aqui deveriam os cristãos depositar seu mais supremo cuidado e esforço. Faça a sua parte, e Deus certamente fará a dele. Examine seu coração e sua obediência, os quais Deus está sempre pronto a ajudar com sua graça, e o Senhor providenciará para que você não perca sua recompensa. Ó como muitos cristãos desonram a Deus e a si mesmos quando ficam mais apreensivos sobre a parte da obra de Deus que à deles mesmos, como se eles devessem suspeitar mais da fidelidade de Deus que do coração infiel e traiçoeiro deles! Esse descanso é glorioso, e Deus é fiel! A morte de Cristo é suficiente; e a promessa, livre, universal e verdadeira. Você não deve temer perder o céu por causa da deficiência ou da ausência de qualquer uma dessas coisas. No entanto, para tudo isso, a falsidade do coração do homem, se ele não o examinar, pode destruí-lo. Se você duvidar disso, acredite no Espírito Santo. "Visto que nos foi deixada a promessa de entrarmos no descanso de Deus, que nenhum de vocês pense que falhou" (Hb 4.1). A promessa é verdadeira, mas condicional. Jamais tema que o Senhor possa quebrar sua promessa, mas tema caso você não preencher totalmente a condição, pois nada mais poderia impedir você de alcançar esse benefício.