Capítulo 2 A DEFINIÇÃO DESSE DESCANSO O sentido do texto, entretanto, inclui na palavra "descanso" tudo o que representa sossego e segurança, o que a alma--exausta por causa do fardo do pecado e do sofrimento, e perseguida pela lei, ira e consciência--tem com Cristo nesta vida, o descanso da graça, e por que, principalmente, almeja o descanso da glória eterna, como seu fim e a parte principal, mas restringirei meu discurso apenas a esse último.
O descanso é o fim e a perfeição do movimento. O descanso do santo, aqui em questão, é o estado mais feliz de um cristão, quando chegar ao fim de seu percurso; ou o perfeito e eterno desfrutar de Deus pelos santos aperfeiçoados, de acordo com a medida da capacidade a que sua alma chega ao momento da morte; e tanto a alma como o corpo desfrutarão disso plenamente após a ressurreição e o julgamento final.
Chamo isso de estado do cristão (embora a perfeição consista em ação, de acordo com o pensamento dos filósofos), o observar tanto o desfrutar passivo como o ativo, em que repousa a bênção cristã e a continuidade de ambos.. Nossa condição será perfeita e perfeitamente limpa; nós, e também nossa capacidade, aperfeiçoada; nossas posses e nossa segurança para sua perpetuidade, perfeitas; nos-so receber de [Deus], perfeito; nossos movimentos, ou ações, nele e em relação a ele, perfeitos; e, portanto, nosso desfrutar dele e, por conseguinte, nossa felicidade, serão, naquele momento, aperfeiçoadas. [...]
Chamo esse estado de o mais feliz de todos, para diferenciá-lo não apenas de toda a aparente felicidade que encontramos no prazer da companhia das pessoas, mas também daqueles inícios, antecipação, ganhos, primeiros frutos e graus imperfeitos, tudo que temos aqui nesta vida, enquanto estamos apenas no caminho. Esse é o bem maior que o mundo há muito pleiteia, embora de forma equivocada, ou ainda o negligencie, e sem o qual o homem, mesmo com a confluência de todos os outros benefícios, é desgraçado. [...]
Chamo esse estado de cristão, mas tenho em mente apenas os cristãos sinceros, os regenerados e os santificados, cuja alma, ao descobrir a maravilha em Deus--algo que não se encontra no mundo--, por meio de Cristo e por causa disso estar próximo a ele e, cordialmente, estabelecido nele. Não quero com isso dizer todos os que nasceram em países em que o cristianismo é a religião predominante e o aceitam como qualquer outra peculiaridade cultural, tornando-se cristãos sem nem saber como ou por que; tampouco me refiro àqueles que professam a Cristo por meio de palavras, mas o negam em suas ações. Esse é um estado que muitos aspiram, e com muita convicção; e como eles sabem que apenas os cristãos o alcançam, declaram-se, portanto, cristãos. No entanto, multidões, por fim, saberão, para seu eterno pesar, que essa é apenas a herança dos santos, e apenas aqueles cristãos que não estão no mundo herdarão esse descanso. [...]
Acrescento que essa felicidade consiste da obtenção do fim, mas quero dizer com isso o fim supremo e derradeiro. [...] Não o fim da conclusão, em relação ao tempo, pois todo homem tem seu fim; mas o fim da intenção, que leva a alma a agir e é a razão primeira de todas as suas ações. [...] O estado eterno, realmente, depende muito de nosso correto julgamento e apreciação de nosso fim!
Mas a grande dúvida de muitas pessoas é saber se a obtenção dessa glória pode ser nosso fim; não, concluíram eles, pois isso é ser mercenário; sim, pois tornar a salvação o fim da obediência é legalismo e o mesmo que agir sob a aliança das obras, cujo lema é: "Faça isso e viva". E muitos outros que acham que esse pode ser nosso fim, embora achem que talvez não seja nosso fim supremo, pois este deve ser apenas a glória de Deus. Responderei, de forma breve, a cada uma dessas posições.
É apropriadamente chamado de mercenário, pois espera receber pelo trabalho feito, e, assim, não devemos fazer do pagamento nosso fim. De outra forma a ordem de Cristo não passaria de mercenarismo. Portanto, considere o que esse fim quer dizer, ele é o gozo de Deus em Cristo: e se buscar Cristo é ser mercenário, eu quero ser mercenário.
Isso também não é uma observação legalista, pois o fundamento de muitos dos últimos equívocos em relação à divindade é achar que o lema: "Faça isso e viva", refere-se apenas à linguagem da aliança de obras. É verdade, em certo sentido, que é; mas, em outro sentido, não é. A lei das obras apenas afirma: "Faça isso", ou seja, cumpra perfeitamente toda a lei, "e viva", ou seja, por fazer isso; mas a lei da graça também diz: "Faça isso e viva"; ou seja, creia em Cristo, busque-o e lhe obedeça como seu Senhor e Rei; renuncie a tudo, sofra todas as coisas e supere, e, ao fazer isso, ou por fazer isso, como a condição que o evangelho propõe para a salvação, você viverá. Se, novamente, estabelecer a revogação das obrigações da lei, então você é legalista; se você estabelecer as responsabilidades do evangelho em lugar de Cristo, em sua totalidade ou em parte, isso ainda é um erro. Cristo tem seu lugar e sua missão; as responsabilidades também têm seu lugar e sua missão; ponha cada coisa em seu devido lugar e espere com isso apenas a parte que lhe é devida, e você estará no caminho certo. [...] Nenhum homem deve procurar mais responsabilidades do que as que Deus determinou; e podemos e devemos fazer isso. [...]
Para aqueles que pensam que esse descanso deve ser nosso fim, mas não nosso fim supremo, pois este deve ser apenas a glória de Deus, não me oporei a eles. Apenas espero que considerem que o que Deus uniu, o homem não deve separar. A glória de Deus e a salvação de seu povo não são dois decretos de Deus, mas apenas um, o de glorificar sua misericórdia na salvação de seu povo, embora devamos reconhecer que um é o fim do outro; assim, acho que eles deveriam estar juntos conosco em nossas intenções. Devemos objetivar a glória de Deus, mas não considerada por si só, sem a nossa salvação, mas em nossa salvação. [...] Estou certo de que Cristo é oferecido à fé em termos que, em grande parte, respeita o bemestar do pecador, mais que sua glória em separado. Ele será recebido como Salvador, Mediador, Redentor, Reconciliador, Intercessor. E todos os preceitos das Escrituras, endossados por tantas promessas e ameaças, e Deus realmente quis que eles fossem nossa razão de viver, realmente deixam implícito outro tanto. [...]
Na definição, considero a felicidade do cristão como o fim de seu caminho, mas quero dizer com isso o mesmo que Paulo quando se referiu a todo o escopo de sua vida (2Tm 4.7). [...] Considero a felicidade a obtenção desse fim; pois isso não é a mera promessa daquilo que nos faz, de imediato, perfeitamente felizes, nem o mero resgate de Cristo, nem nossa mera busca, mas a apreensão e a obtenção que põem a coroa na cabeça do santo. [...] Ó que todos nós acreditemos firme e sinceramente que jamais seremos verdadeiramente felizes até esse momento! Portanto, não devemos cometer disparates para alcançar uma aparente felicidade aqui.