Capítulo 6: Como uma criancinha (Lucas 18.17) Quando nosso Senhor abençoou as crianças, ele estava fazendo sua última viagem a Jerusalém. Foi, portanto, uma bênção de despedida o que ele deu aos pequenos, e dentre suas últimas palavras a seus discípulos, antes de ser levado para o céu, nós encontramos a ordem terna: "Cuide dos meus cordeiros." A paixão reinante estava forte sobre o grande Pastor de Israel, que "Com o braço ajunta os cordeiros e os carrega no colo"; e foi apropriado que, enquanto fazia sua viagem de despedida, abençoasse com sua graça as crianças.
Nosso Senhor Jesus Cristo não está entre nós em pessoa, mas nós sabemos onde ele está, e sabemos que ele é investido de todo o poder no céu e na Terra para abençoar seu povo; acheguemo-nos, então, a ele. Vamos buscar que ele nos toque na forma de comunhão, e vamos pedir o auxílio de sua intercessão; vamos incluir outras pessoas em nossas orações e, dentre elas, vamos dar a nossas crianças, a todas as crianças, um lugar proeminente. Conhecemos mais sobre Jesus do que as mulheres da Palestina conheciam; estejamos nós, então, mais ansiosos ainda do que elas para levar nossas crianças a ele para que as abençoe, e para que sejam aceitas nele, assim como nós mesmos somos. Jesus aguarda abençoar. Ele não mudou no caráter, nem empobreceu na graça; pois assim como ele ainda recebe pecadores, assim também ele ainda abençoa crianças; e que nenhum de nós se contente, quer sejamos pais ou professores, antes de ele ter recebido nossas crianças, e as ter abençoado de tal modo que tenhamos certeza de que elas entraram no reino de Deus.
Nosso Salvador, quando viu que seus discípulos não estavam só com um pé atrás para deixar as crianças chegarem até ele, mas que repreenderam aqueles que as levavam, ficou muito descontente, e chamou-as para si para que as pudesse ensinar melhor. Então, informou que, em lugar das crianças serem vistas como intrusas, eram bem-vindas a ele; e em lugar de serem intrusas, tinham pleno direito de acesso, pois o seu reino era composto de crianças e de pessoas com espírito de criança. E mais, declarou que ninguém pode entrar naquele reino a não ser como as crianças entram. Ele falou com certeza divina, usando o seu expressivo "Em verdade vos digo" (ara) ou "Digo-lhes a verdade" (nvi), em que há o peso de sua autoridade pessoal: "Eu vos digo." Essas expressões de introdução visam apontar nossa reverente atenção ao fato de que, longe da admissão de crianças ao reino ser incomum ou estranha, ninguém pode achar entrada ali a não ser que receba o evangelho como uma criança pequena o recebe.
É até óbvio que os discípulos pensassem que as crianças eram insignificantes demais para ocuparem o tempo do Senhor. Se tivesse sido um príncipe que quisesse chegar a Jesus, sem dúvida, Pedro e os outros teriam se movimentado para lhe conseguir uma apresentação; mas, vejam, eram mulheres pobres, com bebês, e meninos, e meninas. Se tivesse sido uma pessoa comum como eles, não os teriam impedido com repreensões. Mas meras crianças! Bebês nem desma-mados e criancinhas! Ficava mal estarem se intrometendo com o grande Mestre. Uma palavra é usada com respeito aos candidatos infantis que pode significar crianças de qualquer idade, desde os bebês que mamam até as crianças de 12 anos; certamente Jesus tinha suficiente preocupação sem a intrusão desses juvenis. Ele tinha os mais altos assuntos em que pensar, e cuidados mais sérios. As menores eram tão pequeninas, com certeza estavam bem longe das atenções dele - assim os discípulos pensavam em seus corações.
Mas se for questão de insignificância, quem pode esperar obter a atenção divina? Se pensamos que as crianças devem ser pequenas à sua vista, o que somos nós? Ele vê as ilhas como coisas muito pequenas; os habitantes da Terra são como gafanhotos; sim, somos todos como coisas que nada são. Se fôssemos humildes, diríamos: "Senhor, que é o homem para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes?" (Sl 8.4). Se imaginamos que o Senhor não notará o pequeno e insignificante, o que achamos nós de um texto como este: "Não se vendem dois pardais por uma moedinha? Contudo, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês" (Mt 10.29). Deus cuida de pardais e não cuidará de criancinhas? A idéia de insigni-ficância deve ser afastada imediatamente. "Embora esteja nas alturas, o Senhor olha para os humildes" (Sl 138.6).
Mas será que as criancinhas são tão insignificantes? Elas não povoam o céu? A sua convicção não é essa? A minha é - que eles constituem uma parte considerável da população dos céus. Multidões de pés infantis estão pisando as ruas da Nova Jerusalém. Tirados do peito antes que tivessem cometido qualquer pecado real, livrados da peregrinação árdua da vida, eles contemplam sempre a face de nosso Pai que está no céu. "Dos tais é o reino de Deus." Você chama esses pequenos de insignificantes? Os pequeninos, os mais numerosos no exército dos eleitos, você ousa desprezá-los? Eu poderia trocar as coisas, e chamar os adultos de insigni-ficantes, entre os quais não se pode achar mais do que um pequeno remanescente que serve ao Senhor. Além disso, muitas crianças são poupadas para crescerem à situação de homem, e por isso nós precisamos não achar uma criança insignificante. Ele é o pai do homem. Nele há grandes possibilidades e capacidades. Sua virilidade está ainda por se desenvolver, mas está lá, e aquele que a menospreza prejudica o homem. Aquele que põe uma tentação na mente de um menino pode destruir a alma de um homem.
Um erro mínimo injetado no ouvido de um jovem pode se tornar mortal no homem quando o veneno lento tiver tocado por fim uma parte vital. Mato semeado nos sulcos da infância crescerá com o crescer do jovem, amadurecerá na sua plenitude, e só se deteriorará como uma triste corrupção quando ele próprio decai. Por outro lado, uma verdade que cai no coração de uma criança ali frutificará, e sua idade adulta verá o fruto dela. Aquela criança que escuta na aula a voz suave de seu professor ou de sua professora pode ao se desenvolver tornar-se um Lutero e sacudir o mundo com sua veemente proclamação da verdade. Quem dentre nós poderá dizer? Em todo caso, com a verdade em seu coração, o menino crescerá para honrar e temer o Senhor, e assim ajudará a manter viva a semente piedosa nesses dias ruins. Portanto, que nenhum homem despreze os mais jovens, ou pense que são insignificantes. Eu reivindico um lugar na frente para eles. Peço que, se outros são mantidos para trás, que a própria fraqueza de quem faz isso possa abrir lugar para as crianças, lugar para os meninos e as meninas!
Suponho que esses apóstolos adultos acharam que a mente das crianças eram insignificantes demais. Elas estão brincando e rindo; acharão ser só mais um passatempo ser recebidas nos abraços de Jesus; será divertido para elas, e não terão idéia nenhuma da solenidade de sua posição. Insignificante, então? Critica-se que as crianças são frívolas! E vocês não são também frívolos? Se há um exame sobre a questão de frivolidades, quem são os maiores frívolos, as crianças ou os homens e as mulheres de idade adulta? O que é mais frívolo do que um homem viver pelo divertimento de prazeres sensuais, ou a mulher viver para se vestir e desperdiçar seu tempo na sociedade? Ora, mais ainda, o que é o acúmulo de riqueza por amor à riqueza a não ser uma frivolidade miserável? Será que é brincadeira de criança, mas sem o divertimento?!
A maioria dos homens é frívola numa escala maior do que as crianças, e essa é a diferença principal. As crianças quando são frívolas brincam com coisas pequenas - seus brinquedos são tão quebráveis! Não são mesmo feitos de propósito para servirem de passatempo e serem quebrados? A criança com seus passatempos está fazendo o que deve. Mas, tristemente, eu conheço homens e mulheres que brincam frivolamente com suas almas, com o céu e o inferno e a eternidade; brincam com a Palavra de Deus, brincam com o Filho de Deus, brincam com o próprio Deus! Não acuse as crianças de serem frívolas, porque seus joguinhos muitas vezes têm outro tanto de sinceridade e são tão úteis quanto as atividades de homens. A metade dos concílios de nossos senadores e os debates de nossos parla-mentares são piores do que brincadeira de crianças. O jogo de guerra é uma tolice muitíssimo maior do que as mais frívolas brincadeiras de crianças. As crianças grandes são piores para frivolidades do que as pequenas quando o mundo todo está absorto em coisas frívolas.
"Sim", dizem eles, "mas se deixássemos as crianças chegarem a Cristo, e se ele as abençoasse, elas logo se esque-ceriam disso. Por mais amoroso que fosse o olhar dele e espirituais as suas palavras, voltariam a suas brincadeiras, e suas fracas memórias não guardariam traço nenhum disso". Essa objeção nós enfrentamos da mesma maneira que as outras. Os homens não esquecem? Que geração esquecida é essa para a qual a maioria dos pregadores prega! Na verdade, esta é uma geração como aquela sobre a qual Isaías disse: "Ordem sobre ordem, ordem sobre ordem; regra e mais regra; um pouco aqui, um pouco ali" (Is 28.10). Que pena! Muitos necessitam que o evangelho lhes seja pregado outra e outra e mais outra vez, até que o pregador esteja quase extenuado com sua tarefa desesperançada; pois são como homens que vêem seu rosto num espelho, e seguem seu caminho para esquecer que tipo de homens são. Vivem em pecado ainda. A Palavra não tem lugar para habitar em seu coração. Esquecimento! Não faça essa acusação contra as crianças para que ela não seja provada contra vocês.
Mas será que os pequenos esquecem? Eu acho que os acontecimentos dos quais mais lembramos na idade avançada são os que nos aconteceram em nossos primeiros tempos. Já dei a mão para homens grisalhos que já esqueceram quase todos os acontecimentos que intervieram entre sua idade avançada e o tempo de sua infância, mas pequenas coisas que se deram em casa, hinos aprendidos ao pé de sua mãe, e palavras ditas por seu pai ou sua irmã, ficaram com eles. As vozes da infância ecoam durante toda a vida. O que foi aprendido primeiro é, em geral, a última coisa a ser esquecida. Aquelas crianças teriam o rosto de Jesus gravado em seu coração, e nunca se esqueceriam de seu sorriso bondoso e terno. Pedro, Tiago e João, e o restante de vocês, estão enganados, e por isso precisam deixar as crianças virem a Jesus.
Talvez, também, eles tenham achado que as crianças não tinham capacidade suficiente. Jesus Cristo disse coisas tão maravilhosas que se pensava que as crianças não tivessem capacidade de recebê-las. Contudo, na verdade, esse é um grande erro, pois as crianças entram prontamente no sentido do ensino do nosso Senhor. Nunca aprendem a ler tão rapidamente de nenhum livro como do Novo Testamento. As palavras de Jesus são tão simples e adequadas às crianças que elas as absorvem melhor do que as palavras de qualquer outro homem, por mais simples que ele esteja tentando ser. As crianças compreendem prontamente a criança Jesus. O que é essa questão de capacidade? Que capacidade falta? Capacidade de crer? Eu lhes digo, as crianças têm mais disso do que pessoas adultas. Não falo agora da parte espiritual da fé, mas quanto à faculdade mental, há qualquer quantidade da capacidade de fé no coração de uma criança. Sua capacidade de crer não foi ainda sobrecarregada com superstição, nem pervertida com mentiras, nem mutilada com descrença. É só deixar o Espírito Santo consagrar a habilidade, e há bastante dela para a produção de fé abundante em Deus.
A respeito de que as crianças são deficientes em capacidade? Falta-lhes capacidade de arrependimento? Certamente não; será que eu não vi uma menina chorar até ficar doente por ter feito algo mau? Uma consciência sensível em muitos garotinhos já os têm enchido de tristeza indizível quando tomaram consciência de uma falta. Será que alguns de nós não lembramos das flechas doídas de convicção de pecado que amolavam nosso coração quando éramos ainda crianças? Eu me lembro bem de uma vez que não pude descansar por causa de um pecado, e busquei o Senhor, enquanto ainda criança, com angústia amarga. As crianças têm capacidade suficiente para o arrependimento, com Deus o Espírito Santo trabalhando neles; isso não é conjectura, pois nós mesmos somos testemunhas vivas.
O que falta às crianças em matéria de capacidade? "Ora, elas não têm entendimento suficiente", diz alguém. Entendimento de quê? Se a religião de Jesus fosse a do pensamento moderno, se fosse algum sem-senso sublime que ninguém a não ser a classe dos cultos pudesse entender, então as crianças poderiam ser incapazes de compreender; mas se é mesmo o evangelho da Bíblia do leitor comum, então há poças rasas onde o menor carneirinho do aprisco de Jesus pode andar na água sem medo de ser derrubado pela correnteza. É verdade que nas Escrituras há grandes mistérios, em que os maiores podem mergulhar e não encontrar o fundo; mas o conhecimento dessas coisas profundas não é essencial para a salvação, ou poucos de nós estaríamos salvos. As coisas que são essenciais à salvação são tão simples que nenhuma criança precisa desistir por desespero de não entender as coisas que contribuem para sua paz. Cristo crucificado não é um enigma para os sábios, e sim uma verdade simples para pessoas simples: sim, é carne para os homens, mas é também leite para os bebês.
Você disse que as crianças não sabem amar? Essa, afinal, é uma das mais grandiosas partes da educação de um cristão. Você imaginou que as crianças não pudessem chegar lá? Não, você não disse isso, nem ousou pensá-lo, pois a capacidade de amar é maior numa criança. Bom seria se fosse sempre tão grande assim em nós!
Para resumir os pensamentos dos apóstolos em uma ou duas palavras: eles acharam que as crianças não deveriam aproximar-se de Cristo porque não eram como eles--não eram homens e mulheres feitos. Uma criança não era suficientemente grande, alta, crescida, importante, para ser abençoada por Jesus! Foi mais ou menos o que pensaram. A criança não deve chegar ao Mestre porque não é como o homem. Mas o Salvador bendito inverteu a situação e disse: "Não diga que a criança não pode vir ao Mestre porque não é como o homem, mas saiba que você não pode vir até que você seja como ela. Não há dificuldade no caminho da criança por ela não ser como você; a dificuldade está com você, que não é como a criança." Em vez de a criança precisar esperar até crescer e se tornar homem, é o homem que precisa decrescer e tornar-se criança. "Quem não receber o reino de Deus como uma criança, não entrará nele." As palavras do Senhor são uma resposta completa e suficiente aos pensamentos dos discípulos, e que possa cada um de nós ao lê-las aprender sabedoria. Não digamos: "Ah, que minha criança se torne adulta como eu para que possa chegar a Cristo!", mas, ao contrário, que nós quase desejássemos ser criancinhas de novo, que conseguíssemos esquecer muito do que sabemos hoje, fôssemos lavados de hábitos e preconceitos, e pudéssemos começar de novo com o viço, a simplicidade e o entusiasmo de uma criança. Ao orarmos por meninice espiritual, a Bíblia coloca seu selo na oração, porque está escrito: "Ninguém pode ver o reino de Deus, se não nascer de novo", e outra vez, "A não ser que vocês se convertam e se tornem crianças, jamais entrarão no reino dos céus".
Ora, fico pensando se alguém ainda tem um pensamento como o dos discípulos no cérebro ou no coração? Será que alguém pensou alguma vez deste modo? Não me surpreenderia se pensassem. Espero que isso não seja tão comum como já foi, mas eu costumava ver em certos meios entre os velhos uma desconfiança profunda da piedade juvenil. Os anciãos abanavam a cabeça em desaprovação sobre a idéia de receber crianças como membros na igreja. Alguns até aventuravam falar nos convertidos como sendo "só uma porção de meninas e meninos" como se ficasse pior para eles com isso. Muitos, se ouvem falar numa criança convertida, ficam duvidando, a não ser que venha a morrer logo, e então crêem tudo a respeito dela. Se a criança vive, eles afiam as machadinhas para ter sua vez de atacá-la no exame. Ela precisa conhecer todas as doutrinas, certamente, e precisa ser sobrenaturalmente séria. Não é todo adulto que conhece as mais altas doutrinas da Palavra, mas se o garoto não as conhece, é posto de lado.
Alguns esperam uma sabedoria quase infinita numa criança antes de conseguirem crer que ela é objeto da graça divina. Isso é monstruoso. Então, também, se uma criança crente age como criança, alguns dos pais da geração passada julgam que não pode estar convertida, como se a conversão em Cristo acrescentasse vinte anos à nossa idade. Naturalmente, o jovenzinho convertido não pode mais brincar, nem conversar em seu próprio estilo infantil, porque os mais velhos ficariam chocados; porque ficou mais ou menos entendido que logo que um menino fosse convertido, ele devia se tornar um velho. Nunca encontrei algo na Bíblia que apoiasse essa teoria; mas então a Escritura não foi tão procurada quanto foi o julgamento das pessoas tão profundamente experimentadas, e a opinião geral de que era bom deixar todos os convertidos passarem um verão e inverno antes de admiti-las nos recintos sagrados da igreja.
Ora, se qualquer um de vocês ainda tem na cabeça uma idéia hostil à conversão de crianças, tente livrar-se dela, pois é errada tanto quanto pode ser. Se houvesse dois candidatos à minha frente agora, uma criança e um homem, e eu recebesse de cada um o mesmo testemunho, eu não teria mais razão de desconfiar da criança do que do homem--o fato é que, se suspeita precisa entrar no caso, deve ser mais exercitada em direção ao adulto do que em referência à criança, pela probabilidade muito menor de ser culpado de hipocrisia do que o homem, e da probabilidade muito menor de ter copiado do outro as palavras e frases. De qualquer modo, aprenda com as palavras do Mestre que você não deve tentar fazer uma criança como você, mas você deve ser transformado até que se torne como uma criança.