Nota do editor

O próximo capítulo traz uma certa surpresa, dentro do argumento geral do livro que tanto enfatiza a necessidade de se compartilhar do evangelho com crianças, isto é, que "as crianças que morrem na infância são salvas pela eleição da graça." Ainda que muitos tenham grande simpatia por essa idéia de salvação de crianças que morrem na infância, é necessário dizer que esta é uma doutrina obscura, sem fundamentos bíblicos.

É importante notar que a Bíblia diz que todos, sem exceção, já nascem condenados pelo pecado, portanto, todos são passíveis de morte (Rm 5.12ss). "Pois o salário do pecado é a morte" (Rm 6.23). A única solução que temos para resolver este problema de inimizade contra Deus é Jesus Cristo, pela fé, sem qualquer mérito de nossa parte (Rm 12.23, Ef 2.8-9). Jesus é "o caminho, a verdade e a vida." Ninguém vai ao Pai, a não ser por ele (Jo 14.6). Se existissem outros caminhos, então Jesus não precisaria ter sofrido na cruz. Por isso, não podemos criar caminhos alternativos, porque isso inutilizaria a obra substitutiva da cruz. Isso não faz de Deus um ser cruel nem injusto. Mas demonstra claramente a seriedade do pecado e sua necessidade de condenação. Mais uma boa razão e urgência para proclamarmos as Boas Novas do Evangelho.

É sem sombra de dúvida que morte de crianças na infância ou de pessoas com doenças mentais apresenta para muitos de nós um grande paradoxo. Nem por isso, nos é dada a liberdade de recorrermos a idéias contrarias à Bíblia para apaziguarmos nossas consciências. O fato é que nascemos já condenados, por causa do pecado original, e a salvação é um ato gracioso de Deus, pela fé em Cristo, totalmente imerecido da nossa parte. Além do mais, a incoerência dessa doutrina levaria os cristãos a darem glória a Deus, quando os índices de imortalidade infantil demonstrassem crescimento, uma vez que as crianças estão salvas mesmo, o que é um verdadeiro absurdo.

Por fim, Spurgeon ainda assim tem a seu favor o fato de que ele acredita que essas crianças foram salvas pela graça soberana e livre de Deus (p. 41); não foi nem por inocência natural, nem por falta de pecado, pois compartilham da mesma natureza decaída de Adão (p. 41). E se foram salvas, foi pela justiça imputada de Cristo, não delas próprias. Ou seja, ao contrário de muitos e por mais contraditório e errado que seja seu argumento, ele ainda afirma que todos, indiscriminadamente, precisam depender da justiça de Jesus Cristo, da regeneração do Espírito e da graça e amor de Deus, se querem herdar a vida eterna.

Capítulo 5: Dos tais é o reino do céu

Nosso Senhor conta aos discípulos que o evangelho estabelece um reino. Será que já existiu um reino sem crianças? Nesse caso, como poderia crescer? Jesus nos diz que as crianças são admitidas no reino; não que alguns poucos sejam aqui e ali admitidos nele, mas "dos tais é o reino de Deus". Não me inclino a fugir do sentido claro dessa expressão, nem a sugerir que ele meramente diga que o reino consiste daqueles que são como crianças. É claro que ele apontava tais crianças como aquelas que estavam na frente dele--bebês e crianças pequenas--"dos tais é o reino de Deus". Há crianças em todos os reinos, e há crianças no reino de Cristo; e não garanto que João Newton não tenha tido razão quando disse que a maioria das pessoas que estão agora no reino de Deus é criança. Quando penso em todas as multidões de bebês que morreram, que agora estão apinhando as ruas do céu, parece-me uma idéia bendita que, embora muitas gerações de adultos tenham morrido na incredulidade e rebelião, um número grande de crianças passa subindo ao céu, salvas pela graça de Deus, através da morte de Cristo, para cantar os altos louvores do Senhor para sempre diante do trono eterno. "Dos tais é o reino do céu". Isso dá um tom e um caráter ao reino; é mais um reino de crianças do que de homens feitos.

Nosso Senhor nos diz que o meio de entrar no reino é recebendo. "Quem não receber o reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele." Nós não entramos no reino de Deus resolvendo algum problema profundo e chegando à sua solução; nem extraindo de dentro de nós alguma coisa, mas sim, recebendo algo secreto para dentro de nós. Entramos no reino por meio do reino entrar em nós: ele nos recebe uma vez que o recebemos. Ora, se essa entrada no reino dependesse de algo ser extraído da mente humana através de estudo e pensamento profundo, então, poucas crianças poderiam entrar nele; porém, essa entrada depende de algo ser recebido, portanto, as crianças podem entrar. As crianças que já têm idade para pecar, e serem salvas pela fé, precisam escutar o evangelho e recebê-lo pela fé: e elas podem fazer isso, com Deus, o Espírito Santo as ajudando. Não há dúvida sobre isso porque muitos já o fizeram. As crianças são capazes de receber o conhecimento de Cristo muito mais cedo do que se imagina; temos visto e conhecido crianças que deram abundante prova de que receberam Cristo e creram nele com poucos anos de idade. Algumas morreram triunfantemente, e outras viveram graciosamente, e algumas estão aqui agora, crescidas para serem homens e mulheres que são honrosos membros da igreja.

Nós sabemos que infantes entram no reino, pois estamos convencidos de que todos da nossa raça humana que morrem na infância são incluídos na eleição da graça e participam da redenção efetuada por nosso Senhor Jesus. Seja o que for que alguns pensam, todo o espírito e tom da Palavra de Deus, bem como a natureza do Próprio Deus, levam-nos a crer que todos os que deixam este mundo como bebês são salvos. Ora, como é que eles recebem o reino, pois de igual modo nós precisamos recebê-lo? Certamente, as crianças não o recebem por nascimento ou sangue, pois nós somos avisados pelo evangelho de João que os filhos de Deus são nascidos não de sangue nem da vontade da carne. Todo privilégio de descendência agora é abolido, e nenhum bebê entra no céu porque nasceu de pais piedosos e também nenhum será barrado por seus progenitores terem sido ateus ou idólatras. Parece-nos que o filho de um maometano, ou de um papista, budista, canibal, morrendo na infância, é tão seguramente salvo como o filho do cristão. Salvação por sangue ou nascimento não pode haver, porque a dispensação do evangelho não o admite: se salvos, como nós seguramente cremos que são, as crianças devem ser salvas simplesmente segundo a vontade e o prazer de Deus porque ele os fez para serem seus.

As crianças que morrem na infância na China e no Japão são tão verdadeiramente salvas como as que morrem na Inglaterra ou Escócia. Bebês de mães morenas, ou nascidos numa aldeia africana ou na barraca cônica do índio americano, todos são igualmente salvos, e, portanto, não são salvos por qualquer rito exterior, nem pelo poder místico de um sacerdócio. São elevados ao reino do céu pela graça soberana e livre de Deus. Como são salvos, então? Por obras? Não, pois nunca fizeram nenhuma. Pela sua inocência natural? Não; pois se essa inocência pudesse lhes ter admitido no céu, também teria bastado para salvá-las de dor e morte. Se não há pecado sobre elas, como é que puderam sofrer? O pecado imputado que as faz morrer impede-nos de crer que elas reivindicaram o céu por direito de inocência. Elas morreram por causa da queda de Adão. Triste conseqüência por terem nascido de pais decaídos. Note seus olhares de apelo quando os pequeninos olham para cima em seu sofrimento como se quisessem perguntar por que precisam suportar tanta dor. A angústia do pequenino moribundo é uma prova da queda de Adão, e de sua participação no resultado dela. Os pobrezinhos vivem novamente, no entanto, porque Jesus morreu e reviveu, e eles estão nele. Perecem, quanto a essa vida, por um pecado que não cometeram; mas também vivem eternamente por uma justiça da qual não participaram, a própria justiça de Jesus Cristo, que os redimiu. Pouco sabemos sobre isso, mas supomos que passaram por uma regeneração antes de entrarem no céu, pois o que nasce da carne é carne, e para entrar no mundo espiritual eles precisam ser nascidos do Espírito. Mas o que quer que tenha se operado neles, é claro que eles não entram no reino pela força do intelecto, da vontade ou do mérito, e sim por resultado da livre graça, não tendo referência a nada que tenham feito ou sentido. Da mesma maneira, você precisa passar para o reino inteiramente pela livre graça, e não por qualquer poder ou mérito próprio. Você entrará no céu tão plenamente pela graça como se nunca tivesse vivido uma vida piedosa, nem praticado uma só virtude.

Agora temos que pensar em outra sorte de crianças, aquelas que viveram mais do que o tempo da infância e se tornaram crianças capazes de verdadeiro pecado, e de conhecer Cristo e serem convertidas. Muitas dessas crianças entram no reino pela fé. Como essas crianças recebem o reino do céu, nós precisamos recebê-las. E como as crianças o recebem? Uma criança recebe o evangelho com humildade, com fé simples e com desapego às coisas mundanas. As crianças não nos são mostradas como um exemplo em todas as coisas, pois elas têm faltas que nós devemos evitar, mas são aqui louvadas pelo modo como recebem o reino. E como uma criança o recebe? Primeiro, com humildade. Ela é suficientemente humilde para não ter preconceito. Conte para uma criança pequena a respeito de Jesus Cristo, o Salvador, e se Deus abençoar o contar da história da cruz, e ela acreditar na história, ela a recebe sem ter pontos de vista e noções erradas para revidar. Muitos adultos ouvem o evangelho com a idéia de que Cristo é meramente um homem; não conseguem livrar sua mente desse preconceito, e por isso não recebem Jesus Cristo, o Senhor. Outro ouve a palavra com a lembrança de tudo que ouviu e leu sobre infidelidade, heresia e imprecações. Como pode ele aproveitar até que isso seja removido? Outro vem com a mente estufada com justiça própria e orgulho, com crença em poder sacerdotal, ou dependência de alguma ordem formal ou rito religioso. Se pudéssemos tirar as travas da alma, haveria alguma esperança, mas tudo isso é empecilho. Ora, a querida criança, quando escuta a história do amor de Deus em Cristo Jesus não tem nenhum desses preconceitos para atrapalhar o que ouve. Muito provavelmente nem sabe que tais males foram inventados pelo homem, e é abençoado em sua ignorância dessas coisas. Descobrirá o mal sem dúvida já cedo demais; mas por enquanto ela bebe a palavra humildemente, e ora:


Meigo Jesus, manso e suave,
Eu sou pequeno! Olhe-me.
Simples sou, tenha piedade
E deixe que eu me chegue a ti.


Ora, esse livramento de noções preconcebidas é algo de que nós precisamos muito. Assim como seus filhos precisam crer, também você precisa. Só há um caminho para o pastor e o sábio, o filósofo e o camponês. A criancinha recebe Cristo humildemente, pois nunca sonha com mérito ou compra. Não me recordo de ter algum dia encontrado uma criança que tivesse de batalhar contra a justiça própria na hora de vir a Cristo.