Capítulo 3: Os discípulos e as mães Os discípulos imediatos de nosso Senhor foram um grupo de homens altamente honrosos. Apesar de seus erros e deficiências, eles devem ter sido grandemente adoçados por viverem próximo de alguém tão perfeito e tão cheio de amor. Suponho, então, que, se esses homens, que eram a nata da nata, censuraram as mães que levaram seus filhos pequenos a Cristo, isto deve ser uma ofensa bastante comum na igreja de Deus. Temo que a geada paralizadora desse erro seja sentida em quase toda parte. Não farei nenhuma afirmação pouco generosa; mas acredito que se fosse feita uma pequena investigação pessoal, muitos de nós poderíamos descobrir sermos culpados nesse ponto, e poderíamos ser levados a exclamar com o copeiro de faraó: "Hoje me lembro das minhas faltas." Será que temos nos esforçado pela conversão de crianças tanto quanto temos nos esforçado pela conversão de adultos? Acham que estou sendo sarcástico? Vocês se derramam pela conversão de alguém? O que preciso lhes dizer? É terrível que o espírito de Caim entre no coração de um crente e o faça dizer: "Sou eu o responsável por meu irmão"? É chocante que nós mesmos comamos a gordura, bebamos o doce e deixemos as multidões famintas a perecer. Mas, me digam, se vocês não cuidaram da salvação de almas, não achariam um tanto trivial começar com meninos e meninas? Sim; e seu sentimento é compartilhado por muitos. A falha é comum.
Creio, no entanto, que esse sentimento, no caso dos apóstolos, foi provocado por zelo ao Mestre Jesus. Esses bons homens pensavam que levar as crianças ao Salvador causaria uma interrupção, pois ele estava envolvido em um trabalho muito melhor: ele agia confundindo os fariseus, instruindo as massas e curando os doentes. Seria correto amolá-lo com os pequenos? As crianças não entenderiam seu ensino, e elas não precisavam de seus milagres por que deveriam elas ser introduzidas para perturbar seus grandes feitos? Assim, os discípulos praticamente disseram: "Levem suas crianças de volta, boas senhoras. Ensinem a elas a lei vocês mesmas, e instruam-nas nos Salmos e Profetas, e orem com elas. Não dá para toda criança ter as mãos de Cristo postas nela. Se deixarmos vir um grupo de crianças, teremos toda a vizinhança aglomerando-se à nossa volta, e o trabalho do Salvador será muito interrompido. Vocês não enxergam isso? Por que agem tão sem pensar?" Os discípulos tinham tanta reverência por seu Mestre que queriam mandar embora os tagarelas para que o grande rabino não parecesse ser um mero professor de bebês. Isso pode ter sido zelo por Deus, mas não era segundo a sabedoria. Desse modo, nos dias atuais, alguns irmãos não gostam de receber muitas crianças na igreja, com medo que se torne uma sociedade de meninos e meninas. Se essas crianças entram na igreja em grande número, a igreja pode sofrer críticas! O mundo lá fora a chamará de uma mera Escola Dominical. Lembro-me de que quando uma mulher de má fama foi convertida em uma de nossas cidades da comarca, houve objeção entre certos professores de que ela fosse recebida na igreja como membro, e certos rapazes mais obscenos chegaram a escrever nas paredes que o ministro batista tinha batizado uma prostituta. Eu disse ao meu amigo que considerasse esse fato uma honra. Assim também, se alguém nos critica por receber crianças novas na igreja, usaremos a crítica na lapela como insígnia de honra. Crianças santas não têm nenhuma possibilidade de nos causar mal. Deus nos enviará pessoas suficientes de idade e experiência para dirigir a igreja com prudência. Não receberemos ninguém que não produza prova do novo nascimento, qualquer que seja sua idade; mas não excluiremos nenhum crente por mais novo que possa ser. Deus nos livre de condenarmos nossos irmãos cautelosos, mas, ao mesmo tempo, desejaríamos que sua cautela aparecesse onde é mais necessário. Jesus não será desonrado pelas crianças: temos muito mais razão para temer os adultos.
A repreensão que os apóstolos fizeram sobre as crianças deve-se em parte por ignorarem a necessidade das crianças. Se alguma mãe naquela aglomeração tivesse dito, "Preciso levar meu filho ao Mestre porque ele é muito afligido com um demônio", nem Pedro, nem Tiago, nem João, teriam feito objeções, mas, ao contrário, teriam ajudado a levar a criança possessa ao Salvador. Ou, suponhamos que outra mãe tivesse dito, "Minha filha tem uma doença que a faz definhar, está só pele e osso; permitam-me levar minha queridinha para que Jesus ponha suas mãos sobre ela", os discípulos todos teriam dito: "Abram caminho para essa mulher e seu fardo infeliz." Mas por que esses pequenos de olhos vivos, de línguas soltas e pernas saltitantes, deveriam ir a Jesus? Esqueceram-se de que nessas crianças, com toda sua alegria, saúde e inocência aparente, havia uma necessidade grande e grave da bênção da graça de um Salva dor. Se você cede à idéia dos tempos de que seus filhos não precisam de conversão, de que crianças nascidas de pais cristãos são um tanto superiores a outras, e tem o bem dentre eles que só precisa de desenvolvimento, uma grande motivação para sua sinceridade devota deixará de existir.
Creia-me, suas crianças precisam que o Espírito de Deus lhes dê novo coração e espírito reto, porque, do contrário, irão se perder como outras crianças. Lembre-se de que por mais novos que sejam, há uma pedra dentro do peito mais jovem; e essa pedra precisa ser tirada, ou, então, será a ruína da criança. Há uma tendência para o mal mesmo onde não é desenvolvida em ato, e essa tendência precisa ser vencida pelo poder divino do Espírito Santo, que atua fazendo com que a criança nasça de novo. Ah, que a igreja de Deus lance fora a velha idéia judaica, ainda tão forte à nossa volta que o nascimento natural traz consigo privilégios da aliança!
Ora, mesmo sob a Velha Dispensação houve sugestões de que a semente verdadeira não era nascida segundo a carne, e sim segundo o espírito, como no caso de Ismael e Isaque, e de Esaú e Jacó. Será que nem a igreja de Deus sabe que "O que nasce da carne é carne, mas o que nasce do Espírito é espírito"? "Quem pode extrair algo puro da impureza?" O nascimento natural comunica a impureza da natureza, mas não pode transmitir graça. Sob a nova aliança nos é comunicado expressamente que os filhos de Deus "não nasceram por descendência natural, nem pela vontade da carne nem pela vontade de algum homem, mas nasceram de Deus".
Sob a antiga aliança, o nascimento segundo a carne produzia privilégio; mas para entrar de qualquer modo na aliança da graça é preciso nascer de novo. O primeiro nascimento nada lhe traz senão uma herança com o primeiro Adão; é preciso nascer de novo para se colocar sob a chefia do segundo Adão.
Mas está escrito, diz alguém, que "a promessa é para vocês e para seus filhos". Nunca houve uma desonestidade mais grave do que a citação deste texto conforme é geralmente citada. Já a ouvi sendo usada inúmeras vezes para provar uma doutrina que está bem longe do que ela ensina claramente. Se pegarmos parte da frase de uma pessoa, sem considerarmos o resto, podemos fazer com que ela diga o oposto daquilo que quis dizer. O que você acha que o texto realmente diz? Veja Atos 2.39: "A promessa é para vocês, para os seus filhos e para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar." Essa declaração grandiosamente ampla é o argumento no qual está fundada a exortação: "Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado." Não é uma declaração de privilégio especial de ninguém, e sim uma apresentação da graça que tanto é para todos que estão longe como para eles e seus filhos. Não há nenhuma palavra no Novo Testamento para mostrar que os benefícios da graça divina são em qualquer grau transmitidos por descendência natural: eles vêm "para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar", quer tenham pais santos ou pecadores. Como as pessoas têm o descaramento de rasgar metade de um texto de modo que se ensine o que não é verdade? Você precisa olhar com tristeza para seus filhos como nascidos no pecado, e formados na iniqüidade, "herdeiros da ira, assim como outros"; e embora você mesmo possa pertencer a uma linhagem de santos, e traçar seu pedigree de um pastor para outro pastor, todos eminentes na igreja de Deus, assim mesmo seus filhos ocupam exatamente a mesma posição pelo seu nascimento como ocupam os filhos dos outros; por isso precisam ser redimidos da maldição da lei pelo sangue precioso de Jesus, e precisam receber uma nova natureza pela obra do Espírito Santo. São favorecidos por serem colocados sob um treinamento piedoso, e ouvirem o evangelho; mas sua necessidade e sua pecaminosidade são as mesmas como há no resto da humanidade. Se você pensar nisso, verá o motivo pelo qual os filhos devem ser trazidos a Jesus Cristo motivo pelo qual devem ser trazidos tão depressa quanto possível, nos braços de sua oração e fé naquele que tem poder para renová-los.
Tenho encontrado por vezes uma experiência espiritual mais profunda em crianças de 10 e 12 anos do que em muitas pessoas de 50 e 60 anos. Diz um velho provérbio que algumas crianças nasceram com barba. Alguns meninos são homenzinhos, e algumas meninas são mulheres idosas. Não meça a vida das pessoas pela sua idade. Conheci um garoto que, quando tinha 15 anos, muitas vezes ouviu cristãos de longos anos dizer: "O menino tem 60 anos; ele fala com tanto discernimento da verdade divina." Eu creio que esse jovem, aos 15 anos, sabia mesmo muito mais das coisas de Deus, e da luta da alma, do que pessoas à sua volta, fosse qual fosse sua idade. Não sei dizer por que é assim, mas sei que é, que alguns são velhos quando são novos, e alguns estão muito imaturos quando são velhos; alguns são sábios quando era de se esperar que fossem diferentes, e outros são muito tolos quando seria de se esperar que tivessem deixado sua tolice. Não fale da incapacidade de uma criança para o arrependimento! Já vi uma criança adormecer soluçando durante meses a fio sob um sentimento esmagador de pecado. Se quer conhecer um profundo, e amargo, e terrível medo da ira de Deus, deixe-me contar-lhe o que eu senti quando menino. Se quer conhecer a alegria no Senhor, muitas crianças já ficaram tão cheias dela quanto pôde caber em seu coraçãozinho. Se quer entender o que é fé em Jesus, você não deve olhar para aqueles que foram confundidos pelo jargão herético dos tempos, e sim para as preciosas crianças que acreditam em Jesus pela sua palavra, que creram nele, e amaram-no, e, portanto, sabem e têm certeza de que são salvos. A capacidade de crer se acha mais na criança do que no adulto. Nós nos tornamos menos capazes de fé, em vez de mais capazes: cada ano leva a mente não regenerada para mais longe de Deus, e a torna menos capaz de receber as coisas de Deus. Nenhum terreno está mais bem preparado para a boa semente do que aquele que ainda não foi pisado e endurecido como a estrada, nem ficou cheio de mato com espinhos. Também, em alguns casos, a criança ainda não aprendeu os enganos do orgulho, a mentira da ambição, as ilusões do mundanismo, os truques do comércio, os sofismas da filosofia; e por enquanto desfruta de uma vantagem sobre o adulto. Em todo caso, o novo nascimento é obra do Espírito Santo, e ele pode tão facilmente trabalhar sobre o jovem como sobre a idade madura.
Alguns, também, têm impedido as crianças porque se esquecem do valor da criança. O preço da alma não depende de quantos anos se tem. "Ah, é apenas uma criança." "Crianças são uma amolação." "Crianças estão sempre atrapalhando o caminho." Essa conversa é comum. Deus perdoe aqueles que desprezam os pequeninos! Será que alguém ficaria muito zangado se eu dissesse que vale mais salvar um menino do que um homem? É misericórdia infinita da parte de Deus salvar aqueles que têm 70 anos; pois qual o bem que podem fazer agora com o enfado restante de sua vida? Quando chegamos a ter 50 ou 60 anos, estamos quase desgastados; e se passamos todos nossos dias moços com o diabo, o que fica para Deus? Mas há algo para ser realizado com esses queridos meninos e meninas. Se agora se rendem a Cristo poderão ter um dia longo, feliz e santo pela frente no qual podem servir a Deus de todo coração. Quem sabe que glória Deus pode receber deles? Terras pagãs poderão chamá-los bem-aventurados. Nações inteiras poderão ser iluminadas por eles. Se um mestre famoso costumava tirar o chapéu para seus alunos porque não sabia se um deles poderia vir a ser um primeiro-ministro, nós podemos com justiça olhar para as crianças convertidas, pois não sabemos daqui a quanto tempo estarão entre os anjos, ou com que grandeza sua luz brilhará entre os homens. Avaliemos as crianças no seu valor verdadeiro, e não os impediremos, mas estaremos ansiosos por levá-los a Jesus imediatamente.
Em proporção à nossa própria espiritualidade da mente, e em proporção à nossa própria atitude de coração, igual à da criança, nós estaremos à vontade com crianças; e a par de seus temores e suas esperanças, sua fé nascedoura e seu amor desabrochante. Convivendo com os convertidos juvenis, parecerá estarmos num jardim de flores, num vinhedo onde as uvas tenras são perfumadas.