... e o encarregado da festa [...] chamou o noivo e disse: "Todos servem primeiro o melhor vinho e, depois que os convidados já beberam bastante, o vinho inferior é servido; mas você guardou o melhor vinho até agora" (Jo 2.9,10).

Na mensagem anterior, já esgotei meu tempo com a descrição da festa de Satanás -- como, nas suas quatro mesas, onde se sentavam o devasso, o justo aos próprios olhos, o mundano e o pecador oculto, sendo que a seqüência de Satanás ao servir às mesas era sempre a seguinte -- primeiro o melhor vinho e, depois que os convidados já beberam bastante, o vinho inferior. Sua festa foi diminuindo o valor à medida que continuava, começou com o brilhante crepitar dos espinheiros embaixo do caldeirão, e prosseguiu até a escuridão das trevas eternas. Então, na segunda divisão, queria demonstrar que a regra no banquete de Cristo é totalmente inversa -- Cristo sempre serve o melhor vinho no fim -- ele guarda as coisas boas até o fim da festa; mais ainda: às vezes as primeiras taças na mesa de Cristo estão cheias de fel e de vermute, amarguíssimas, mas, se continuarmos na festa, elas se tornarão cada vez mais doce, até que, no fim, quando tivermos chegado à terra de Beulá, e especialmente ao entrarmos na cidade do nosso Deus, nos sentiremos obrigados a dizer: "Guardaste o melhor vinho até agora".

Ora, meus caros amigos, a verdade maravilhosa é que a festa sempre aumenta a doçura. Quando, da primeira vez, o Senhor Jesus Cristo proclamou a festa para os filhos dos homens, a primeira taça colocada na mesa era bem pequena, e continha umas poucas palavras de consolo. Vocês se lembram da inscrição do vasilhame antigo, na primeira taça de consolo oferecida aos filhos dos homens -- "O descendente da mulher ferirá a cabeça da serpente" (Gn 3.15). Para eles, havia bem pouca doçura ali; mas muita para nós, porque entendemos melhor a promessa, porém para eles havia um pouco, porque o Espírito de Deus talvez os ajudasse a entender, mas ainda na revelação dela, parecia haver bem pouca promessa. À medida que o mundo continuava sua história, taças maiores de vinho precioso foram apresentadas, e delas bebiam os patriarcas e os santos da Antigüidade; mas, amados, todo o vinho recebido na dispensação do Antigo Testamento era muito inferior ao que bebemos. O que é o menor do reino dos céus é muito mais favorecido que o maior na dispensação do Antigo Testamento. Nossos pais comeram do maná, mas nós comemos do pão que desceu do céu; eles beberam da água no deserto, mas nós bebemos da água viva -- e quem dela beber nunca mais terá sede. É verdade que desfrutavam de muita doçura; os cálices do tabernáculo antigo continham vinho precioso; no símbolo, sinal e sombra externos, havia muita coisa que era um deleite para a fé do crente verdadeiro; mas devemos nos lembrar de que bebemos do vinho que profetas e reis desejavam beber, mas morreram sem prová-lo. Eles imaginavam sua doçura; pela fé, podiam prever como seria; mas eis que estamos autorizados a sentar-nos à mesa e beber goles profundos de vinhos deixados na borra e bem refinados, que Deus nos deu neste monte onde fez uma festa de finos manjares para todos os povos.

Amados, no entanto, o texto permanece verdadeiro no tocante a nós -- está para vir vinho melhor. Nos nossos privilégios, somos superiores aos patriarcas, reis e profetas. Deus nos deu um dia mais brilhante e claro do que eles tinham; deles era a penumbra do começo do amanhecer, em contrapartida com o meio-dia que desfrutamos. Mas não pensem que já chegamos ao vinho melhor. Haverá banquetes mais nobres para a igreja de Deus; e quem sabe quanto tempo falta para o melhor do vinho precioso ser deslacrado? Vocês não sabem que o Rei dos céus está para voltar de novo a esta terra? Jesus Cristo, que veio uma vez e derramou o coração a nosso favor no Calvário, está para vir de novo, a fim de inundar a terra com sua glória. Ele veio uma vez, trazendo a oferta pelo pecado; agora, vem de novo, já sem oferta pelo pecado, mas com a taça de ações de graças, para invocar o nome do Senhor e alegremente tomar para si mesmo o trono de Davi, seu pai. Você e eu, se estivermos com vida e permanecermos na terra, ainda levaremos essa taça aos lábios; e se morrermos, teremos o privilégio, esse feliz consolo, de não ficarmos para trás, pois "a trombeta soará, e os mortos serão ressuscitados incorruptíveis", e beberemos do vinho milenar que Cristo, nosso Salvador, reservou até o fim. Santos!

Vocês nem sabem que taças de ouro são as que beberão durante os mil anos do triunfo do Redentor. Vocês nem sabem que vinho, espumante e vermelho, haverá, que virá da vindima das colinas da glória, quando aquele cujas vestes vermelhas pelo pisar do lagar, descerá no grande dia e ficará em pé na terra. Ora, só pensar nisso animava a Jó: "Eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra. E depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus" (Jó 19.25). Que isto anime você, cristão, e o encha de regozijo: o melhor vinho é guardado até aquele tempo.

E agora, tendo demonstrado que essa é a regra de Cristo na grande aliança que ele faz com toda a sua igreja, chegarei ao assunto, que é o seguinte: Primeiro: O fato de o crente descobrir que Cristo guarda para ele o melhor vinho para o fim; em segundo lugar: O motivo para Cristo assim fazer; e, em terceiro lugar, A lição que devemos aprender com isso.

 

I. Primeiro, o fato de Cristo guardar o melhor vinho até o fim. Durante minha vinda para cá, estava pensando como isso é muito verdadeiro a respeito de alguns do povo de Deus. Há, pois, alguns dos mais amados de Deus que têm os nomes gravados no peitoral do grande sumo sacerdote, que foram comprados com seu sangue, muito queridos à sua alma, e que nunca souberam desde a sua juventude uma vida fora das profundezas da pobreza. Precisavam viver gastando no mesmo dia o pouco que ganhavam, sem saber, dia após dia, de onde viria a refeição seguinte. Quantos outros existem entre o povo de Deus, que estão deitados no leito da aflição? Alguns dos diamantes mais preciosos de Deus jazem no monturo da enfermidade. Vocês podem subir a muitas câmaras em que verão todos os tipos de enfermidades nojentas, prolongadas e dolorosas, e verão os amados de Deus definhando-se na vida moribunda. Poderia indicar a vocês outros servos de Deus, cujos dias são gastos na labuta.

É necessário para o corpo humano, e especialmente para a alma, um pouco de descanso, e um pouco do alimento do conhecimento; mas estes receberam tão pouca instrução, que não conseguem preparar alimentos para si mesmos; sem ler, dificilmente entendem, e sofrem dura servidão nesta vida, o que lhes amarga a vida e estorva o acesso ao conhecimento. Precisam trabalhar desde a manhã até a noite, quase sem nenhum minuto de repouso. Oh, amados, esse melhor vinho não será deles, quando a morte lhes der a dispensa, quando deixarão o mundo, que foi para eles, enfaticamente, um vale de lágrimas? Eles não terão que dizer: "Tu guardaste o melhor vinho até agora?". Oh, que mudança para a que vinha mancando até o santuário nestes muitos dias do Senhor! Pois ali, já não subirá mancando e aleijada, mas "o aleijado pulará como o cervo", e, assim como Miriã, dançará com as filhas de Israel.

Ah, vocês podem ter precisado sofrer enfermidades e tristezas e dores, cegueira e surdez, e um milheiro dos males deste mundo: que mudança, quando perceberem que todas elas foram embora! Nenhuma dor torturante, nenhuma necessidade premente, nenhum cuidado ansioso. Vocês não precisarão clamar para a luz do sol entrar na sua habitação, nem chorar porque a vista está falha por causa da labuta excessiva com a agulha assassina; mas verão a luz de Deus mais brilhante que a luz do sol, e se regozijarão nos raios provenientes da sua face. Vocês não terão mais enfermidades; a imortalidade terá coberto e engolido a todas elas; o que foi semeado na fraqueza será ressuscitado no poder; o que foi semeado de modo desordeiro, cheio de dor e de tristeza, e desarticulado e cheio de agonia, será ressuscitado cheio de deleites deliciosos, não mais passível de angústia, mas estremecendo de alegria e bem-aventuranças inefáveis. Vocês não mais serão pobres; serão ricos, mais ricos que o sonho do avarento. Não precisarão labutar mais; poderão repousar na cama, e cada um andará na sua retidão. Não mais sofrerão da negligência, zombaria, ignomínia, e da perseguição; vocês serão glorificados com Cristo, no dia em que ele vier para ser admirado por quem o ama. Que mudança para essas pessoas! O melhor vinho realmente é guardado até o fim, no caso delas, porque aqui não tomaram nenhum vinho bom, aos olhos dos homens, embora tenham bebido muitas vezes da botija de Jesus. Ele muitas vezes lhes forneceu aos lábios a taça de líquido animador. Elas têm sido não raro como a cordeira do homem na parábola de Natã: beberam do cálice do próprio Cristo na terra, mais doce, porém, que o cálice será o trago recebido no fim.

Meus caros amigos, embora eu coloque essas pessoas em primeiro lugar, por sentir especialmente a mudança, e porque nós conseguimos ver a diferença, o mesmo não deixará de acontecer com os mais favorecidos dos filhos de Deus; todos eles dirão: "O melhor vinho foi guardado até agora". De todos os homens a quem eu poderia invejar, acho que o mais invejável seria o apóstolo Paulo. Que homem! Quão altamente favorecido, grandemente dotado! Tão abençoado! Ah, Paulo, você falou em revelações e visões do alto. Ele ouviu coisas tais, que era ilícito contá-las, e viu o que poucos olhos já viram. Foi arrebatado até o terceiro céu. Que goles de alegria o apóstolo deve ter recebido! Quantas visões das coisas profundas de Deus! Que vôos até as alturas do céu! Talvez nunca tenha havido um homem mais favorecido por Deus, a ponto de ter a mente expandida, para então ficar repleta da sabedoria e da revelação do conhecimento do Altíssimo. Mas perguntem ao apóstolo Paulo se ele crê na existência de algo de melhor para vir, e ele lhes responderá: "Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma como sou plenamente conhecido" (1Co 13.12). Parece claro a esperança de receber mais; e, amados, ele não foi decepcionado.

Havia um céu tanto acima de todos os deleites de Paulo, como os deleites de Paulo estavam acima das depressões do seu espírito, quando disse: "Miserável homem que eu sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte?" (Rm 7.24). Existem filhos de Deus que possuem tanto quanto possam necessitar dos bens deste mundo; parecem estar livres dos cuidados terrestres, e têm fé suficiente para confiar em Deus no tocante ao futuro. Sua fé é firme e forte; sentem muito amor ao Redentor; estão ocupados em alguma obra agradável, e o Espírito Santo concede grande sucesso a esse trabalho. Seus dias seguem com regularidade um após o outro, como as ondas do mar calmo e quieto. Deus está com eles, e são grandemente abençoados; estendem as raízes à beira do rio, suas folhas não murcham, e tudo o que fizerem prospera; em toda atividade na qual colocam a mão, o Senhor Deus é com eles, e em qualquer terra em que coloquem os pés, são como Josué, a terra lhes é dada como herança para sempre. Contudo, amados, mesmo estes verão coisas maiores do que já viram. Por mais alta que seja a posição à qual o Mestre os levou na casa do banquete, pois mais altaneira que seja a sala na qual já festejam, o Mestre ainda lhes dirá: "Subam mais". Vão conhecer mais, desfrutar de mais, sentir mais, fazer mais, possuir mais. Ficarão mais perto de Cristo; terão prazeres mais ricos e atividades mais doces que até agora; e acharão que seu Mestre guardou seu bom vinho até agora.

Entrando em pormenores por um breve momento, preciso observar, apenas, a existência de muitos aspectos pelos quais podemos considerar o estado celeste, e em cada deles, diremos que Cristo guardou o melhor vinho até então. Aqui na terra, o cristão entra no repouso pela fé; o cristão desfruta do repouso mesmo no deserto; é cumprida a promessa: "... possam viver com segurança no deserto e dormir nas florestas" (Ez 34.25). Deus dá sono a seus amados; existe uma paz que ultrapassa todo o entendimento, da qual poderemos desfrutar mesmo nessa terra de tumulto, de contendas, e de abalos -- uma paz que o mundano não conhece, nem pode imaginar sua existência.

Amados, por mais que bebamos da taça da paz, o melhor vinho é guardado até o tempo futuro. A paz que bebemos hoje tem o sabor de algumas gotas de amargo. Há pensamentos perturbadores; os cuidados deste mundo virão mesmo; as dúvidas surgirão de fato; seja como vivermos neste mundo, precisamos ter inquietudes; os espinhos na carne forçosamente virão. Mas, "quão grande repouso aguarda o povo de Deus". Que vinho bom será aquele! Deus tem o sol sem mancha, o céu sem nuvens, o dia sem noite, o mar sem ondas, o mundo sem lágrimas. Bem-aventurados são os que, tendo passado por este mundo, entraram no repouso, e cessaram das suas obras, assim com Deus descansou das suas, banhando a alma cansada nos mares do repouso celestial.

Olhemos outro aspecto do céu. É um lugar de convívio santo. Neste mundo, já tivemos algum bom vinho do doce convívio. Podemos contar a respeito de muitos dos preciosos filhos de Sião com os quais tomamos doce conselho; bendito seja o Senhor, pois não têm faltado os justos dentre os homens. Alguns de vocês conseguem lembrar-se de nomes dourados que lhes eram muito queridos nos dias da sua juventude -- dos homens e mulheres com os quais subiam à casa de Deus e tomado doce conselho. Ah, que palavras gotejavam dos lábios deles, e que doce bálsamo recebiam nos dias da sua tristeza, quando eles os confortavam e consolavam; e têm amigos que ainda estão com vocês, os quais consideram com certo grau de reverência, ao passo que consideram vocês com afeição intensa. Existem alguns homens que consolam sua alma, e quando vocês falam com eles, entendem que o coração deles corresponde ao seu, de modo que possam desfrutar de união e comunhão. Mas, amados, o melhor vinho é guardado até o fim.

Toda a comunhão com os santos que aqui tivemos, é como nada por comparação com o que vamos desfrutar no mundo porvir. Quão doce é lembrar que, no céu, desfrutaremos do convívio dos melhores homens, mais nobres, mais poderosos, mais honrosos e célebres. Vamos sentar-nos com Moisés, e conversar com ele a respeito de sua vida inteira, cheia de maravilhas; andaremos com José, e o ouviremos contar a respeito da graça que o conservou na hora do perigo; não duvido que vocês e eu teremos o privilégio de ficar ao lado de Davi, e de o ouvirmos relatar os perigos e os livramentos vividos. Os santos no céu formam uma única comunhão; não estão divididos em classes separadas; teremos permissão para andar por todas as fileiras gloriosas, e manter comunhão com todos os santos; nem precisamos duvidar de que poderemos conhecer a todos eles. Existem muitas razões que não posso enumerar agora (pois me levariam tempo demais), as quais, na minha opinião, parecem dirimir a questão de que no céu conheceremos como somos conhecidos, e que conheceremos perfeitamente uns aos outros; e que isso, na realidade, nos leva a ansiar por estar ali. "À igreja dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus" (Hb 12.23).

Quem dera nos livrarmos dessa pobre igreja aqui, cheia de contendas e divisões, de briguinhas e invejas e animosidades -- afastarmo-nos do convívio dos homens cheios de enfermidades, embora tenham muita graça, e chegarmos ao lugar em que não haverá falhas nas pessoas com as quais falaremos -- sem explosões de gênio -- onde não há a possibilidade de soarmos acordes com notas dissonantes -- quando nem teríamos a possibilidade de levantar entre as aves do paraíso algum motivo de contenda -- quando andaremos no meio de todos eles, e veremos o amor sorrindo de todos os olhos, e sentiremos como a afeição profunda está arraigada em todos os corações. Oh! Esse será o melhor vinho! Você não anseia por beber dele? -- entrar da comunhão dessa grande igreja, e comparecer às reuniões gloriosas da igreja,

Olhem, ainda, para o céu, no aspecto do conhecimento. Nesta terra sabemos muitas coisas que nos deixam felizes; Jesus Cristo nos ensinou muitas coisas que nos oferecem júbilo e felicidade. Esse mundo realmente é de ignorância, mas, mesmo assim, entramos na escola do evangelho, e aprendemos algumas verdades doces. É verdade que somos muito semelhantes ao menino que está começando a escrever. Tivemos que fazer muitos ganchos feios variados, e ainda não aprendemos a fazer a doce caligrafia corrente da alegria; no entanto, o Senhor nos tem ensinado algumas grandes verdades para encher de júbilo nosso coração: a grande doutrina da eleição, o conhecimento da nossa redenção, o fato da nossa certeza da salvação em Cristo; essas doutrinas grandiosas, porém singelas, encheram nosso coração de bem-aventurança. Mas, irmãos, o melhor vinho é guardado até o fim, quando o Senhor Cristo tomar o livro e quebrar os seus selos, e nos permitirá ler todo o volume, então nos regozijaremos na realidade, pois teremos nos lábios o melhor vinho. Existem tonéis antigos de conhecimento que contêm o vinho mais rico, e Cristo os deslacrará, e beberemos plenamente deles. Não se admira que saibamos todas essas coisas agora -- são muitas coisas que não poderíamos suportar, e por isso, Cristo as retém; mas

Vocês poderão, se quiserem, olhar para o céu em outro sentido -- como lugar de manifestações e alegrias. Ora, este mundo é o lugar de manifestações ao crente. Vou empreender, por um momento, ou até mesmo por um segundo, a descrição das manifestações de si mesmo que Cristo se agrada em oferecer aos pobres filhos na terra? Não, amados, suas experiências suprirão minha falta de palavras. Direi, apenas, que há ocasiões em que o Senhor diz aos amados: "Venha, meu amado, vamos fugir para o campo, passemos a noite nos povoados. Vamos cedo para as vinhas para ver se as videiras brotaram, se as suas flores se abriram e se as romãs estão em flor; e ali te darei o meu amor" (Ct 7.11-12). Mas qual não será a comunhão no céu? Estou falhando, nesta noite, na minha tentativa de falar-lhes a respeito do melhor vinho, por essa razão singela -- acredito que na existência de bem poucos homens que possam pregar a respeito do céu de modo muito interessante para vocês, pois sentirão que tudo o que possamos dizer é tão aquém da realidade, que seria melhor não tocar no assunto. Baxter podia escrever Saint's Rest (O descanso eterno dos santos [Shedd Publicações, 2007]), mas não sou nenhum Baxter -- que Deus me concedesse que fosse! É possível, talvez, que venha o dia em que eu possa falar mais copiosamente dessas bênçãos; mas no tempo presente, na minha alma, quando começo falar da comunhão no céu, pareço estar sobrepujado, não posso imaginá-lo; porque o pensamento que sempre sucede à minha primeira tentativa de pensar nele, é o pensamento de gratidão assoberbadora, junto com um tipo de receio de que isso seja bom demais para um verme tão indigno como eu. Para João, era um privilégio colocar a cabeça no peito do Mestre, mas isso é nada comparado com o privilégio de desfrutar eternamente do seu abraço. Oh! Esperemos até chegar ali, como disse alguém na Antigüidade: "Em cinco minutos, você saberá mais a respeito do céu, do que eu lhe pudesse contar em toda a minha vida". Basta ver o nosso Senhor, e nos precipitaremos para seus braços, sentiremos seu abraço, e cairemos a seus pés, e, estava para dizer: Choraremos de alegria? Não, isto seria impossível, mas ficarmos deitados ali, dissolvidos em êxtase -- sentirmos que finalmente chegamos ao local querido, do qual nos falou quando disse: "Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar" (Jo 14.1,2). Verdadeiramente, ele tem guardado o melhor vinho até o fim.

 

II. E agora, qual é o motivo do Senhor para fazer isso? É este o segundo tema. De modo muito breve.

O Senhor poderia nos ter dado o melhor vinho primeiro, mas não quer agir como o Diabo age; ele sempre quer fazer uma ampla distinção entre seus modos de tratar, e o tratamento oferecido por Satanás.

Além disso, ele não nos dará primeiro o bom vinho, porque assim não é do seu beneplácito. "Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino" (Lc 12.32). Essa é a única razão por que vocês o receberão mesmo; e a razão por que não o recebem agora é não ser do agrado dele que vocês o recebam agora mesmo.

Além disso, o Pai não lhes dá o bom vinho agora, porque primeiro lhes abre o apetite para isso. Nas festas antigas dos romanos, os homens bebiam coisas amargas e todos os tipos singulares e nocivos a fim de os deixar com sede. Ora, neste mundo, Deus está, por assim dizer, deixando seus filhos mais sedentos, a fim de beber goles mais profundos do céu. Não posso imaginar que o céu seria tão doce para mim, se não tivesse que morar primeiramente na terra. Quem conhece melhor a doçura do repouso? Não é o trabalhador? Quem entende melhor a alegria da paz? Quem entende melhor a alegria da paz? Não é quem já habitou na terra da guerra? Quem conhece melhor a doçura da felicidade? Não é quem passou por um mundo de tristeza? Seus apetites são aguçados por essas provações; vocês são preparados para receber a plenitude do júbilo na presença de Deus para sempre.

Além disso, o Senhor tem em mira o seguinte. Ele os está deixando dignos de tomar o melhor vinho, a fim de ser glorificado pela provação da fé de vocês. Se eu tivesse a possibilidade de ir ao céu nesta noite, e pudesse entrar ali, mas se tivesse uma suspeita de que houvesse mais para fazer ou mais para sofrer aqui, preferiria infinitamente mais aguardar o tempo determinado pelo Pai; isto porque, segundo penso, no céu bendiremos a Deus por tudo o que tivermos sofrido. Quando tudo tiver acabado, quão doce será falar a respeito. Quando vocês e eu nos encontrarmos nas ruas do céu -- e existem alguns de vocês que passaram por bem poucas provações, por bem poucas dúvidas e temores, e tribulações e conflitos, -- vocês falarão a respeito de como Deus os libertou; mas não poderão falar do jeito de alguns dos santos que foram provados. Ah, que histórias doces alguns deles contarão! Eu gostaria de estar ao lado de Jonas, e ouvir dizer como desceu até o fundo das montanhas, e como pensava que a terra com suas trancas o envolvera para sempre. E Jeremias -- freqüentemente penso em tanta coisa que receberemos de Jeremias na eternidade, -- o que ele terá para dizer, tendo mergulhado tão profundamente no mar da tristeza! E Davi, também, o doce salmista, tão cheio de experiências, ele nunca cessará de contar o que o Senhor tem feito por ele! E acho que você e eu, ao chegarmos ao céu, teremos bastante coisa para pensar. Como disse uma pobre mulher, quando passava grande dúvida e medo a respeito da própria salvação -- disse na oração: "Senhor, se tu me salvares, uma só coisa poderei te prometer. Se levares ao céu, nunca mais cessarás de escutar a respeito, pois te louvarei enquanto durar a imortalidade, e vou contar aos anjos que ele me salvou". E este é o tema constante no céu. Cada um fica se maravilhando de como chegou até ali. Amados, se nós não tivéssemos que passar por essas provações e aflições, e por esses conflitos da alma, e por coisas semelhantes, teríamos bem poucos assuntos para conversarmos no céu. Não tenho dúvida de que os nenês no paraíso estejam tão felizes quanto os demais, mas não desejo ser um nenê no paraíso. Bendigo a Deus porque não fui para o céu quando era nenê; terei tanto mais motivos para louvar a Deus, quando eu relembrar a vida de misericórdias, provações, mas que também era uma vida de graça sustentadora. Haverá um cântico tanto mais sonoro, por terem sido mais profundas nossas aflições. Estas, penso, são algumas das razões de Deus.

 

III. E agora, amados irmãos e irmãs, o que direi a respeito da lição que devemos aprender do fato de Cristo guardar o melhor vinho até agora. Voltando para casa, uma noite destas, notei a diferença entre o compasso do cavalo em vir para cá e em voltar para casa, e pensei comigo mesmo: "Ah, o cavalo está andando bem, porque está voltando para casa". Vocês sabem, se estivéssemos viajando para fora de casa, cada pedra encontrada na estrada poderia ser um empecilho, e talvez precisássemos aplicar bastante o chicote para progredirmos. Mas agora, a viagem é para casa. Bendito seja Deus porque cada passo que dermos faz parte da volta para casa. Podemos ficar com aflições até os joelhos, mas tudo faz parte da caminhada; podemos ter medo pelos tornozelos, mas é o retorno para casa. Posso tropeçar, mas sempre tropeço em direção à casa. Todas as minhas aflições e mágoas, quando me lançam por terra, não deixam de me lançar para frente, em direção ao céu. O marinheiro não se importa com as ondas, se cada onda o impelir mais perto do porto, e não acha ruim por mais forte que uivam os ventos, se tão-somente o soprarem para mais perto do porto. Esta é a sorte feliz do cristão: ele está indo em direção à casa. Que isto o anime, cristão, e o leve a continuar com alegria a sua viagem, sem precisar do chicote para conclamá-lo ao dever, mas sempre continuando com alacridade no dever e na provação, porque se dirige para casa.

Ainda: se as melhores coisas estão para vir, amados amigos, não fiquemos descontentes. Agüentemos umas poucas coisas ruins agora, visto que só na aparência são ruins. O viajante apressado na viagem, se precisa pernoitar em um estalagem, pode se queixar um pouco da falta de conforto na acomodação, mas não comenta muito, porque estará de saída no dia seguinte, e passará pouco tempo ali; ele diz: "Amanhã à noite chegarei em casa", e então fica pensando nas alegrias de casa, e não se importa com os desconfortos da viagem difícil. Vocês e eu somos viajantes. Dentre em breve, acabará. Talvez tenhamos uma pouca quantia por semana, diferentemente do vizinho, mas estaremos iguais a ele quando chegarmos no céu. Ele talvez tenha possuído uma casa grande, com muitos cômodos, ao passo que nós tivemos um único quarto de cima; no Paraíso, teremos uma morada tão grande quanto ele. Em breve, chegaremos ao fim da viagem, e porquanto tenhamos chegado ali, a estrada já não nos significará muito. Venham! Agüentemos essas poucas inconveniências pela estrada afora, porque o melhor vinho está para chegar; despejemos de nós todo o vinagre da murmuração; pois o melhor vinho virá.

E, mais: já que o cristão está para receber o melhor vinho, por que invejar o mundano? Davi o invejava; sentia-se insatisfeito quando via a prosperidade dos ímpios, como você e eu estamos muitas vezes tentados a fazer; mas vocês sabem o que devemos dizer quando virmos a prosperidade dos ímpios, quando os virmos contentes, e cheios do deleite do prazer pecaminoso. Devemos dizer: "Ah, meu melhor vinho ainda está para vir; posso suportar que vocês tenham sua vez; minha vez virá depois; posso ser destituído dessas coisas, e ficar deitado diante do portão, em que também está Lázaro, enquanto os cães lambem as minhas feridas; minha vez ainda virá, quando os anjos me levarão até a presença de Abraão, e a vez de vocês ainda virá também, quando levantarem os olhos, estando em tormentos.

Cristão, o que mais lhe direi? Embora haja mil lições a serem tiradas do fato de o melhor vinho ser guardado até o fim. "Tome cuidado de si mesmo, para que você também guarde seu bom vinho até o fim. Quanto mais longe progride pela estrada, procure apresentar a seu Salvador o sacrifício mais aceitável. Há alguns anos, teve pouca fé: homem! Apresente o bom vinho agora! Procure ter mais fé. Seu Mestre o trata melhor dia após dia, e verá que ele é o melhor dos Mestres e dos amigos. Procure agir melhor para com seu Mestre dia após dia; seja mais generoso com a causa dele, mais ativo nos serviços prestados a ele, mais bondoso com o povo do Senhor, mais diligente na oração; e cuide para que, à medida que cresce em anos, que também cresça na graça; de modo que, quando finalmente chegar ao rio Jordão, e o Mestre der o melhor vinho, você possa também dar a ele o melhor vinho, e louvá-lo em voz mais alta quando a batalha acabar de terminar, e quando o redemoinho estiver desaparecendo na paz eterna do paraíso".

E agora, amigos amados, estou consciente de ter fracassado totalmente no meu esforço para apresentar este melhor vinho; mas está escrito que Deus o tem revelado a nós pelo Espírito, mas que o ouvido não o ouviu. Ora, se eu tivesse contado tudo isso a vocês hoje, o ouvido o teria ouvido, e o texto não teria sido verdadeiro; e já que, inconscientemente, comprovei a veracidade deste texto das Escrituras, não posso me lastimar muito por ter ajudado a dar testemunho da veracidade da palavra do meu Mestre. Só digo o seguinte: quanto mais perto de Cristo você viver, mais perto ficará do céu, pois se há um lugar bem perto de Pisga é o Calvário. Talvez pareça estranho, mas se você habitar muito no Calvário, morará bem perto do Nebo; pois embora Moisés possa ter visto Canaã do Nebo, nunca tive uma vista do céu de nenhum lugar a não ser das proximidades do Calvário. Sempre que vi meu Salvador crucificado, então o vi glorificado; quando vi meu nome escrito no seu sangue, contemplei em seguida a mansão que ele preparou para mim. Quando vi meus pecados lavados e removidos, então enxerguei as vestes brancas que usarei para sempre. Habite perto do Salvador, homem, e não ficará muito longe do céu. Lembre-se, afinal, que não é grande a distância ao céu. É só um suspiro quieto, e estamos ali. Falamos dele como de um país muito distante, mas está bem perto, e quem sabe se os espíritos dos justos estão aqui nesta noite? O céu está perto de nós; não conseguimos definir onde está, mas isto sabemos: é um país não muito distante. Está tão perto que, mais rapidamente do que o pensamento, estaremos ali, emancipados dos nossos cuidados e ais, e abençoados para sempre.