Capítulo 19

QUE SENTIMENTOS DEVEM SER
PRODUZIDOS, E POR MEIO DE QUAIS
CONSIDERAÇÕES E OBJETOS,
E EM QUE ORDEM

 

Suponho que, por ora, você já tenha visto quais são os objetos que precisam mover nossos sentimentos, e que poderes da alma compreendem esses objetos. [...] No entanto, para melhor ajudálo, eu o direcionarei de forma mais direta nesses muitos particulares.

Você deve, por meio da cogitação, ir até a memória, o armazém e o depósito da compreensão; assim, precisa separar aquelas doutrinas divinas que você tem a intenção de tornar o assunto de sua meditação. Para nosso propósito presente, você pode buscar qualquer promessa de vida eterna no evangelho; qualquer descrição da glória dos santos, ou as passagens a respeito da ressurreição do corpo e da vida eterna. Algumas das declarações sobre as alegrias eternas podem ser assunto de sua meditação por muitos anos; no entanto, seria sábio ter sempre um estoque de assuntos em sua memória, para que quando os usássemos, pudéssemos separar em nosso tesouro as coisas novas das velhas. Pois um homem bom tem um bom tesouro em seu coração de onde retira coisas boas.

Quando você extrai de sua memória o assunto de sua meditação, seu próximo passo é apresentá-lo a seu julgamento. Abra essa caixa o máximo que puder, apresente os vários ornamentos da coroa, as muitas dignidades pertencentes ao reino, como foram parcialmente apresentados no início deste livro. Permita que seu julgamento examine tudo isso e faça uma vistoria, a mais precisa que puder. A seguir, apresente a questão e exija uma deliberação: há felicidade nisso tudo, ou não? Não tenho aqui o suficiente para me abençoar? Aquele que realmente tem a Deus pode desejar alguma outra coisa? Existe algo mais alto que a criatura possa alcançar? Assim, peça que seu julgamento apresente uma sentença reta e constranja-o a sancionar a perfeição de sua felicidade divina, bem como a deixar essa sentença registrada com sua assinatura embaixo. [...] Exercite, dessa forma, seu julgamento na contemplação de seu descanso.

Mas o grande trabalho (que você pode ou estabelecer de antemão ou acrescentar a ele conforme desejar) é exercitar sua crença na verdade de seu descanso, em relação tanto à verdade da promessa quanto também à verdade de seu próprio interesse e posição. [...] Produzo os argumentos mais fortes para as verdades das Escrituras; advogue em favor deles contra sua natureza descrente; responda a todas as objeções da infidelidade e as silencie; leia as promessas; estude todas as providências confirmadas; traga à lembrança todas suas experiências pessoais já registradas; lembre-se de todas as profecias das Escrituras já cumpridas, tanto em relação à igreja e aos santos de épocas passadas, como também aquelas que foram cumpridas em sua vida. Prepare os argumentos mais claros e convincentes e deixe-os ao seu lado. [...]

E, à medida que você, dessa forma, produz seu consentimento à promessa, também produz sua aceitação, sua adesão, seu compromisso e sua certeza. Esses são os quatro passos da aplicação da promessa a vocês mesmos. [...] Apresente, diante de sua fé, a graciosidade e a universalidade da promessa. Considere a oferta de Deus e persuada a todos sobre ela; e diga que o Senhor não espera uma aliança condicional com homem algum do mundo; nem excluirá do céu ninguém que aceitar sua oferta. Estude também as graciosas disposições de Cristo e sua presteza em acolher e dar as boas-vindas a todos que vierem a ele. Estude todas as evidências de seu amor, as quais podem ser vistas em seus sofrimentos, em sua pregação do evangelho, em sua condescendência para com os pecadores, em sua extremada paciência e em seus convites insistentes e prementes. Isso tudo não desvela sua presteza em salvar-nos? Ele alguma vez demonstrou relutância ou má vontade? Lembre-se também de sua fidelidade para cumprir seus compromissos. Estude também as evidências de seu amor em você mesmo; examine as obras da graça em sua alma. Se você não encontrar a condição, ou a medida, que deseja, ainda assim não negue a condição, ou a medida, que encontrar; procure mais a sinceridade que a quantidade. [...] Lembre-se de todos os testemunhos anteriores do Espírito, e de todas as doces graças de Deus, e de todas as orações que ele ouviu e respondeu, e todas os excepcionais livramentos e resguardos, e todo o progresso do Espírito ao trabalhar em sua alma, e todos os arbítrios da providência para o seu bem; [...] a ministração dos ministros para ajudá-lo em sua condição momentânea; o constrangimento daqueles pecados que você tem mais propensão em praticar; [...] ponha-os todos juntos e, a seguir, pense consigo mesmo se tudo isso não testifica da boa vontade do Senhor com relação a sua salvação, e se não podem ser apresentados para rebater sua incredulidade. [...]

Assim, quando sua meditação prosseguir com a verdade de sua felicidade, a parte seguinte do trabalho é meditar sobre sua bondade; isso, portanto, pode passar adiante e despertar seus sentimentos.

 

I

O primeiro sentimento que deve ser acionado é o amor; o objeto dele é a bondade. Cristão, em seu trabalho, esta é a parte de reavivamento da alma. Vá a sua memória, a seu julgamento e a sua fé e, a partir deles, produza as maravilhas de seu descanso; pegue uma cópia dos registros do Espírito nas Escrituras e outra da sentença registrada em seu espírito, por meio dos quais se declara a glória transcendente dos santos; apresente-os aos sentimentos de seu amor; abra o armário que contém a pérola para seu amor, mostre-lhe a promessa, e também que esta está garantida. Você não precisa olhar para o céu através de um espelho de aumento; abra apenas uma fresta para que o amor possa dar uma olhada ali; apenas um vislumbre das costas de Deus, e você é imediatamente transportado para outro mundo; apenas fale, e o amor o ouvirá; apenas revele essas coisas, e o amor as verá. Cego é apenas o amor bruto do mundo; o amor divino é extremamente perspicaz. Permita que sua fé, por assim dizer, leve seu coração pela mão para mostrar-lhe os prédios suntuosos de sua habitação eterna e os gloriosos ornamentos da casa de seu Pai; e que ela lhe mostre as mansões que Cristo está preparando para nós e apresente diante de seu coração as honras do reino. Permita que a fé leve seu coração à presença de Deus e faça-o se aproximar o mais possível, dizendo: "Este é aquele que fez os mundos com sua Palavra; este é a Causa de todas as causas, a Origem de toda ação; a Fonte da vida, o Princípio Primeiro dos movimentos das criaturas; [...] este é aquele que o amou desde a eternidade; [...] este é o Senhor que o abençoou com esses benefícios".. [...]

Assim você deve discorrer sobre os louvores de Deus e abrir as maravilhas do Senhor ao seu próprio coração, até que você comece a sentir a vida se mover, e o fogo em seu peito a se ascender. Assim como olhar atentamente a beleza empoeirada da carne ascende o amor carnal, também olhar atentamente a glória e bondade do Senhor ascende esse amor espiritual na alma. Os condimentos esmagados realçam seu aroma, e o perfume em contato com a pele espalha sua doçura. Portanto, mova sua alma em meio a esses objetos cheios de deleite; lance, com freqüência, essas cogitações em seu coração; esfregue todos seus sentimentos com eles, da mesma forma que esfrega suas mãos para aquecê-las: como se seu coração fosse duas pedras que de tanto ser golpeadas podem produzir o fogo! [...]

 

II

O próximo sentimento, ou graça, a ser estimulado é o desejo. O objeto dele é a bondade, ausente ou ainda não alcançada. E isso é algo necessário para o amor, e [...] se o amor for quente, garanto a você que seu desejo não será frio. Quando você vir a bondade do Senhor, [...] então prossiga com sua meditação. Pense consigo mesmo: [...] ó glória incompreensível e maravilhosa! Ó beleza rara e transcendente! Ó abençoadas almas que agora desfrutam dela! [...] Que diferença existe entre o meu estado e o delas! Eu suspiro, e elas cantam; eu peco, e elas agradam a Deus; [...] estou aqui enredado nesse amor do mundo, enquanto elas são elevadas com o amor de Deus; vivo realmente em meio aos recursos da graça, [...] mas não tenho nenhuma das visões instantâneas que elas têm de Deus, nem a comunhão com o Senhor que elas têm. Elas não têm nenhum dos meus cuidados e temores; não choram em segredo; não definham em sofrimentos; essas lágrimas já foram enxugadas dos seus olhos. [...] Quão pouco tenho eu desse Deus, desse Cristo, desse Espírito, dessa vida, desse amor e dessa alegria! [...] De vez em quando, uma faísca cai em meu coração e logo, ainda enquanto a observo, apagase; [...] mas elas têm sua luz na luz do Senhor e vivem continuamente na nascente das alegrias! [...] Se minha alma está muito distante de Deus, não é de admirar que agora reclame daquilo que me aflige. [...]

Portanto, permita que seus pensamentos se elevem; portanto, estimule os desejos de sua alma com essas meditações até que sua alma anseie, como Davi, pela água da cisterna da porta de Belém e diga: "Ó aquele que me der de beber água das fontes da salvação!".

 

III

O próximo sentimento a ser estimulado é a esperança. Ele é particularmente útil para a alma. Ajuda, de forma extraordinária, a apoiá-la em momentos de sofrimento; ela encoraja-nos a ousar em meio às grandes dificuldades; ela estrutura firmemente a alma nas tribulações mais tremendas; ela aviva consideravelmente a alma em suas responsabilidades e é a mola que põe todas as rodas em movimento. [...] O marinheiro sairia ao mar e o mercador se aventuraria em terras estranhas, se não tivessem esperança de segurança e sucesso? O fazendeiro araria a terra, plantaria e esforçar-se-ia, se não tivesse esperança de aumentar sua colheita? O soldado lutaria, se não esperasse obter a vitória? Com certeza, nenhum homem se aventuraria diante de impossibilidades. [...] Se sua esperança morrer, suas responsabilidades morrem, seus esforços morrem, suas alegrias morrem, e sua alma morre; e se sua esperança não for ativada, mas ficar adormecida, ela está bem perto da morte, tanto na semelhança quanto na preparação. [...]

Permita, portanto, que a fé lhe mostre a verdade da promessa e o julgamento da bondade das coisas prometidas; e o que falta para o aumento de sua esperança? Mostre a sua alma, a partir da Palavra, das misericórdias e da natureza de Deus, que possibilidade, sim, que probabilidade, sim, que certeza você tem de possuir a coroa. Portanto, pense e arrazoe sobre isso em seu coração; por que eu não deveria esperar de forma confiante e confortável, quando minha alma está nas mãos de tão compassivo Salvador? Ele, alguma vez, manifestou alguma relutância para me fazer o bem? [...] Como ele me seguiu de lugar a lugar, e seu Espírito solicitou incessantemente meu coração, com sugestões convincentes e persuasões proveitosas para o meu bem! [...] Cristo destruiu as impossibilidades e apresentou uma esperança melhor por meio da qual podemos agora chegar mais perto de Deus.

 

IV

O próximo sentimento a ser estimulado é a coragem, ou a ousadia, pois ela nos leva à resolução e resulta em ação. Portanto, coragem quando seu amor, seu desejo e sua esperança tiverem aumentado, siga em frente e pondere consigo mesmo: Deus realmente habitará com os homens e existe essa glória ao alcance da esperança? Então, por que não lanço mão disso? Onde está o vigor alegre de meu espírito? [...] Por que não corro com presteza a carreira diante de mim e não venço valentemente toda a resistência? Por que não conquisto esse reino pela força, e minha alma fervorosa não apreende esse lugar? [...] Tenho de iniciar esse trabalho com minhas próprias forças, ou seria melhor utilizar a força de Cristo, meu Senhor? E eu não posso fazer tudo isso por meio dele que me fortalece? [...] Eles conseguiriam pegar as ovelhas antes de vencer o pastor? Portanto, por que minha carne apresenta para mim as dificuldades e realça, de forma veemente, a enormidade e as dificuldades desse trabalho? Cristo é quem deve responder a todas essas objeções, e que dificuldades podem impedir a atuação de seu poder? Há algo muito difícil para nosso Deus onipotente? [...] Ó abençoado descanso! Ó condição mais inestimável e gloriosa! [...] Quem não se esforçaria, e lutaria, e vigiaria, e correria, e isso com impetuosidade, até o último fôlego, para que pudesse, por fim, ter esperança de alcançar ao Senhor? Certamente, todos, a não ser aqueles que não o conhecem e não crêem em sua glória. Portanto, veja que tipo de meditação pode estimular sua coragem e despertar suas resoluções.

 

V

O último sentimento a ser estimulado é a alegria. Esta é a finalidade de todo descanso: amor, desejos, esperança e coragem, tudo contribui para aumentar nossa alegria. [...]

Por ora, você, se já desempenha bem a antiga responsabilidade, pode entrar no horizonte de seu descanso; você crê que ele é real; está convencido de sua maravilha; já se apaixonou por ele; e anseia por ele; espera por ele; e está determinado a, corajosamente, aventurar-se para obtê-lo; mas há algum trabalho para a alegria nisso tudo? Nós nos deleitamos no bem que possuímos; o objeto da alegria é o bem presente, mas você dirá: "Ai de mim! Ainda não o tenho". Mas, ainda assim, prossiga um pouco mais com seu pensamento. Embora a presença real nos proporcione a mais sublime alegria, ainda assim a presença de sua idéia, ou imagem, imperfeita em minha compreensão pode me proporcionar uma grande porção dessa verdadeira alegria. Não representa nada ter um comprovante dessa dádiva de Deus? Suas promessas infalíveis não são motivo de alegria? [...] Minha garantia de que um dia serei glorificado não é motivo suficiente para a alegria inexprimível? Não é um deleite para o herdeiro do reino pensar no que terá daqui para frente, embora, no momento, ele não difira muito de um servo? Não ordenaram que me alegrasse na esperança da glória de Deus?

Então, leitor, aqui, leve seu coração, por assim dizer, mais uma vez pela mão; traga-o ao topo da montanha mais alta; e, se possível, para algum Atlas, até acima das nuvens. Mostre-lhe o reino de Cristo e sua glória. Diga-lhe: "O Senhor entregará tudo isto àquele que crer nele e o adorar. O Pai agrada-se em dar a você este reino. Você vê esta glória magnífica acima de você? Tudo isto é sua herança; esta coroa é sua; estes prazeres são seus; essa assembléia é sua; este lindo lugar é uma coisa, e todas as coisas são suas, pois você é de Cristo, e Cristo é seu". [...]

Portanto, leve seu coração à terra prometida; mostre-lhe as agradáveis montanhas e os vales frutíferos; mostre-lhe os cachos de uva que você apanhou; e, por meio disso tudo, convença-o de que essa é a terra abençoada da qual mana algo melhor que leite e mel: entre nas portas da cidade santa, caminhe pelas ruas da nova Jerusalém, ande pelo monte Sião, dê a volta nele, observe as torres desse lugar, distinga bem seus costados, olhe os palácios, para que depois possa contar a sua alma. Ela não tem a glória de Deus, e sua luz não se assemelha à pedra mais preciosa? [...]

Prossiga ainda mais, pois é feliz a alma (assim afirma Austin) que ama subir com freqüência ao céu e corre com familiaridade pelas ruas da Jerusalém celeste, visitando os patriarcas e os profetas, saudando os apóstolos, admirando os exércitos dos mártires e dos confessores. Assim é que você deve levar seu coração, de rua em rua, até que entrem no palácio do grande Rei; leve-o, por assim dizer, de sala em sala; diga-lhe: "Aqui é onde morarei, aqui é onde viverei, aqui é onde louvarei, aqui é onde amarei e serei amado. [...] Ocuparei meu lugar em meio a essa assembléia. [...] Minha choupana de barro será substituída por esse palácio, e os farrapos que uso nesta prisão, por essas vestes esplendorosas. [...] Aqui beberei a água do rio dos prazeres: "um rio cujos canais alegram a cidade de Deus" (Sl 46.4). E não receberei com alegria tamanho bem, tal reparação por todas minhas perdas? [...]

Portanto, por que eu não me levanto do pó e deixo de lado meus tristes lamentos, fazendo cessar minha dolorosa e plangente nota? Por que não esmago meus vãos deleites para alimentar-me dos deleites da glória que antevejo? Por que minha vida não é uma alegria contínua e o sabor do céu não está perpetuamente em meu espírito? E, desse modo, caro leitor, eu o direcionei para que pusesse em ação essa alegria. [...]

Também gostaria que você entendesse que não considero uma necessidade manifesta que você ponha em ação todos os sentimentos mencionados nessa ordem e de uma vez, ou apenas em uma responsabilidade. Talvez, algumas vezes, você sinta um sentimento de forma mais manifesta que os outros e, assim, ter mais necessidade de estimulá-lo; ou você pode achar um sentimento mais inspirador que os outros e, assim, achar que é mais apropriado ajudá-lo a se apresentar; ou ainda, se seu tempo é curto, você pode trabalhar em um sentimento um dia, e, no dia seguinte, em outro, conforme seu interesse. Tudo isso deixo a seu próprio critério.