Capítulo 9

A VERDADE INDUBITÁVEL DESSE DESCANSO
COMPROVADA PELAS ESCRITURAS

 

A seguir, prosseguiremos para a confirmação dessa verdade. [...] A Escritura, de seis formas distintas, afirma claramente essa verdade.

Ela afirma que esse descanso foi predestinado aos santos, e os santos, predestinados a ele. "Por essa razão Deus não se envergonha de ser chamado o Deus deles, e lhes preparou uma cidade" (Hb 11.16). "Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam" (1Co 2.9). [...] "... o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não cabe a mim conceder. Esses lugares pertencem àqueles para quem foram preparados por meu Pai" (Mt 20.23): e eles são chamados "vasos de sua misericórdia, que preparou de antemão para glória" (Rm 9.23). E, em Cristo, obtemos a herança, "predestinados con-forme o plano daquele que faz todas as coisas segundo o propósito da sua vontade" (Ef 1.11). "E aos que predestinou, também chamou; aos que chamou, também justificou; aos que justificou, também glorificou" (Rm 8.30): "porque desde o princípio Deus os escolheu para serem salvos mediante a obra santificadora do Espírito e a fé na verdade" (2Ts 2.13). Quem pode privar seu povo desse descanso que lhe foi predestinado pelo propósito eterno de Deus?

Segundo, a Escritura declara que esse descanso foi comprado, como também lhes foi predestinado; ou que eles foram resgatados para esse descanso. E em que sentido pode-se afirmar que foi comprado por Cristo, já demonstrei anteriormente; ou seja, não como o pagamento imediato de nossa dívida, ao satisfazer a lei, mas como um fruto mais remoto e mais excelente; até mesmo o efeito desse poder, que obteve para si pela morte. Ele mesmo, por causa do sofrimento até a morte de cruz, foi coroado com glória, embora ele não tenha propriamente morrido por si mesmo, nem esse foi o efeito direto de sua morte. [...] "Portanto, irmãos, temos plena confiança para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus" (Hb 10.19); até mesmo nossa entrada em todo o gozo do Senhor, tanto por meio da fé como da oração aqui, e pela plena posse na vida por vir. Portanto, os santos cantam seus louvores àquele que "com [s]eu sangue compr[ou] para Deus gente de toda tribo, língua, povo e nação [...] [e] os constitu[iu] reino e sacerdotes para o nosso Deus" (Ap 5.9,10). [...] Cristo foi levantado na cruz da "mesma forma como Moisés levantou a serpente no deserto, [...] para que todo o que nele crer tenha a vida eterna" (Jo 3.14,15). Assim, ou Cristo desperdiçou seu sangue e sofrimento e jamais verá a obra de sua alma, e toda sua dor e esperança foram frustradas, ou, caso contrário, ali há um descanso para o povo de Deus.

Terceiro, como esse descanso foi comprado para nós, ele também nos foi prometido. Como o firmamento tem estrelas, também as páginas sagradas estão cobertas com esses freqüentes acréscimos dessas promessas divinas. Cristo nos disse que seu desejo é que aqueles que lhe foram entregues estejam onde ele estiver, para que vejam a glória que o Pai lhe deu (Jo 17.24); assim, também: "Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino" (Lc 12.32). [...] Não duvide da certeza dessa dádiva, pois ela se fundamenta na boa vontade de seu Pai: "E eu lhes designo um Reino, assim como meu Pai o designou a mim" (Lc 22.29).

Quarto, todos os meios da graça e todas as obras do Espírito na alma, e todas as graciosas ações dos santos são um meio tão evidente para provar que ali há um descanso para o povo de Deus. Se a máxima que Deus e a natureza não fazem nada em vão é inegável, então isso também é verdade em relação a Deus e à graça divina. Todos esses meios e movimentos implicam algum fim para o qual eles se dirigem, ou, caso contrário, eles não podem ser chamados meios, nem são movimentos da sabedoria ou da razão: e não poderia se imaginar nenhum fim menor que este--o descanso. Deus jamais ordenaria a seu povo que se arrependesse e cresse, que jejuasse e orasse, que batesse à porta e buscasse, que, continuamente, lesse e estudasse, que conferisse e meditasse, que se esforçasse e trabalhasse, que corresse e lutasse, e tudo isso sem qualquer propósito. Tampouco, o Espírito de Deus trabalharia neles para alcançar isso, nem criaria um poder sobrenatural neles, não os capacitaria nem os estimularia para que conseguissem esse constante desempenho, se não fosse para os levar a esse fim. Tampouco, os santos poderiam, de forma sensata, tentar esse trabalho, nem suportar sofrimentos tão grandes, se não fosse por esse fim proveitoso e agradável. Mas certamente, independentemente do que a loucura do homem possa fazer, a sabedoria divina não pode ser culpada de dar início a movimentos tão infrutíferos. Portanto, seja onde for que eu leia sobre uma responsabilidade exigida, seja onde for que encontre a graça concedida, tomo isso como as muitas promessas do descanso. O Espírito jamais estimularia desejos tão fortes pelo céu, nem tamanho amor por Jesus Cristo, se não fosse para receber aquilo que desejamos e amamos. Ele que nos pôs aos pés do caminho da paz nos levará a essa paz até o fim. [...]

Quinto, a Escritura ainda nos assegura que os santos têm o início, o antegozo, a garantia e o selo desse descanso aqui: e tudo isso não lhes garante a posse total? O Reino de Deus habita neles (Lc 17.21). [...] Você acha que Deus dá o início onde jamais teve a intenção de dar o fim? Não! Deus, muitas vezes, dá a seu povo presciência e antegozo desse mesmo descanso a ponto de o espírito deles chegar a ser transportados até ele. Paulo foi levado ao terceiro céu e viu coisas sobre as quais "não é permitido falar" (2Co 2.4). Os santos "são protegidos pelo poder de Deus até chegar a salvação prestes a ser revelada no último tempo", quando poderão regozijarse grandemente, até mesmos "em todo tipo de provação" (1Pe 1.5,6). Portanto, o apóstolo também nos diz que aqueles que não tendo visto a Cristo, nem jamais o viram, mas mesmo assim o amam, e, ao crer, alegram-se nele com alegria indizível e gloriosa, alcançam o alvo da fé deles, a salvação da alma (1Pe 1.8,9). [...] Você acha que Deus atormentaria seu povo? Ele seria capaz de lhes dar as primícias, mas não a safra toda? Ele mostra-lhes a glória para que anseiem por ela para, depois, negar-lhes o gozo dessa glória? Ele levanta-os tão próximos desse descanso e permite que eles se regozijem com ele, mas, mesmo assim, não lhes concede esse descanso? Isso não é possível. Não! Ele dá-lhes a "a garantia da [...] [sua] herança" (Ef 1.14) e sela-os "em Cristo com o Espírito Santo da promessa" (Ef 1.13), mas, mesmo assim, nega-lhes a posse plena desse descanso? Esses absurdos não podem ser atribuídos ao homem comum, e muito menos ao nosso Deus justo e fiel.

Finalmente, a Escritura menciona, de forma específica e por nome, aqueles que entraram nesse descanso, como Enoque, que foi arrebatado para junto de Deus. Também Abraão, Lázaro e o ladrão crucificado com Cristo. E, se há um descanso para eles, certamente há um descanso para todos os crentes. [...]

O fim mesmo da Escritura é ser um guia que nos leve a esse abençoado estado, e revelá-lo para nós, e persuadir-nos a buscá-lo da forma ali prescrita, e familiarizar-nos com os obstáculos que nos impedem de alcançá-lo, e ser a garantia e o privilégio por meio dos quais ganhamos nossa posição ali. Assim, aquele descanso, por meio da glória de Deus, está para a Escritura como o fim está para o caminho, que, com freqüência, expressa-se por meio do todo e implica esse todo. Não há ninguém que duvide da certeza dessa glória prometida, exceto aqueles que duvidam da verdade da Escritura, ou os que não conhecem seu conteúdo. [...]