Capítulo 6

ESSE DESCANSO MAIS MAGNÍFICO,
DESCOBERTO PELA RAZÃO
       

O próximo assunto a ser tratado diz respeito às excelentes propriedades desse descanso e aos seus admiráveis atributos que, como as muitas jóias, adornarão a coroa dos santos. Antes de discorrer sobre elas em particular, tentemos compreender essa alegria pela regra dos filósofos para ver se eles não aprovarão esse bem mais transcendental; não como se eles fossem o teste suficiente, mas para que tanto a pessoa comum quanto o santo possam perceber quando algo entra em competição com essa glória do pré-iminente, a razão mesma não aceitará isso. Bem, seguindo a ordem do bem para o mal, o filósofo lhe dirá que por essas regras você pode saber o que é melhor.

 

I

O que se deseja e se busca por si mesmo é melhor que o que se deseja para alguma outra coisa; ou, o fim, como tal, é melhor que todos os meios. Isso conclui em favor da pré-eminência do céu. Todas as coisas não passam de meios para aquele fim. Se nada aqui é excelente, isso acontece por aqui ser um passo para lá chegarmos; e quanto mais ele nos conduz nessa direção, mais ele é excelente. A salvação de nossa alma é o fim último de nossa fé, de nossa esperança, de nosso zelo, de todas as misericórdias, de todas as ordenanças, como já comprovado anteriormente. Não se deseja nem se usa tudo isso por si mesmo, mas para esse descanso. A oração não é o fim da oração; nem a pregação, o fim da pregação; nem a fé, o fim da fé. Isso tudo não passa de um caminho para ele, que é o caminho para esse descanso. Na verdade, Cristo é tanto o caminho quanto o descanso, o meio e o fim. Se tudo que você viu, ou desejou, parece desejável e encantador, então o fim disso tudo deve ser muito mais que o que você vislumbrou.

 

II

Em ordem do bom para o pior, o último ainda é o melhor; pois todo o bem tende à perfeição. O fim é ainda o último a ser desfrutado, embora seja o primeiro a ser almejado. Agora, esse descanso é o último estado dos santos. O início foi como um grão de mostarda, mas a perfeição deles será um estado elevado e florescente [...]. O primeiro dia foi um de pequenas coisas, mas o último será de perfeição eterna. Eles plantaram com lágrimas, mas colherão com alegria. Se a prosperidade deles aqui, sua res secundae [sorte favorável], fosse desejável, muito mais sua res ultimae [sorte final], a ventura derradeira. [...] Certamente, tudo que é bom termina bem, e é bom o que é bom afinal; e, portanto, o céu precisa ser bom.

 

III

Outra regra é esta: aquilo, cuja ausência ou perda é o pior, ou o maior, mal, tem de ser o melhor, ou o maior, bem; e há perda maior que perder esse descanso? [...] Pois ninguém conhece a doçura a não ser aqueles que a desfrutam, assim ninguém conhece essa perda a não ser aqueles que são privados dela. Os homens perversos, aqui, são insensíveis quanto à perda, pois não sabem o que perdem; [...] quando eles souberem tanto o que perderam como pelo que perderam e por que perderam, certamente eles chorarão e rangerão os dentes. O homem que perde riquezas pode ganhar de novo, e o que perde a honra pode repará-la; ou, se isso não for possível, ainda assim ele não está perdido. O homem que perde a vida pode salvá-la; mas o que acontece com aquele que perde a Deus? O que ou quem pode reparar essa perda? Podemos suportar a perda de tudo aqui; se não temos algo, podemos tanto viver sem isso, como também podemos morrer e viver eternamente sem isso; mas podemos fazer isso sem Deus em Cristo? [...]

 

IV

Outra regra é esta: tudo que não pode ser dado pelo homem, nem pode ser tirado pelo homem, é muito melhor do que aquilo que pode; e, depois, espero que o céu arrebate isso; pois quem tem a chave para os tesouros eternos, e quem é árbitro da distinção e da dignidade dos santos? [...] Certamente, todo passo para a glória, todo ato e dom graciosos, toda libertação e misericórdia para com a igreja, tudo é tão claramente de Deus que seu nome será escrito na fronte disso tudo, e seus excelsos atributos estampados em tudo, para que o homem que corre possa ler isso e reconhecer que essa obra é de Deus. E a questão pode ser facilmente respondida, quer ela seja proveniente do céu quer seja proveniente do homem; e, assim, ficará ainda mais evidente que essa glória é dom do Deus da glória. O quê? O homem pode dar a Deus? Ou a terra e o pó podem dar ao céu? Certamente que não. E também está fora do alcance deles nos privar disso. Tiranos e perseguidores podem destituir-nos de nossos bens, mas não de nosso bem maior; podem nos privar de nossos direitos aqui, mas não de nossa condição de liberdade; podem cortar nossa cabeça, mas não nossa coroa. Podemos ser trancafiados em prisões; e ser expulsos da igreja ou dos limites do reino, mas não do céu. Ponha à prova coisas menores: você pode nos negar a luz do sol e impedi-lo de brilhar? Você pode inter-romper a influência dos planetas? Ou impedir que desfrutemos do orvalho que cai do céu? Ou ordenar às nuvens que fechem suas torrentes de água? Ou estancar o curso das correntes de água? Ou fechar as passagens das profundezas do abismo? E muito menos ainda você pode privar-nos de nosso Deus, negar-nos a luz de seu semblante, interromper as influências de seu Espírito, proibir que o orvalho de sua graça caia sobre nós, estancar o curso das correntes de seu amor, estagnar suas fontes transbordantes e incessantes, ou selar as profundezas insondáveis de sua recompensa. É possível que você mate nosso corpo, se o Senhor assim permitir, mas tente, se assim puder, alcançar nossa alma. Não, os santos não têm poder para lhes dar essa glória, nem para que a retirem; assim, de acordo com essa regra, não há estado como o do descanso do santos; pois homem algum pode nos dar esse descanso, e ninguém pode roubar essa alegria de nós.

 

V

Outra regra é esta: é sempre bom, ou superior, aquilo que torna aquele que o tem melhor, ou superior; e, certamente, de acordo com essa regra, não há estado como o céu. Riquezas, honra e prazer não tornam um homem melhor nem superior: a graça nos torna melhor, mas não superior: reserva-se essa prerrogativa à glória. Esse é o bem que nos faz bem, e só nos faz bem o que nos torna bons; caso contrário, podemos ter algo que é bom em si mesmo, mas inútil para nós. O bem externo está muito distante para ser nossa felicidade. [...] Ter o coração elevado para com Deus e para com o céu quando temos riqueza e abundância no mundo não é fácil nem algo comum. Embora a alma e o corpo componham apenas um homem, raramente prosperam juntos. Portanto, nosso bem maior é o que nos fará bem ao coração; e nossa verdadeira glória, a que torna nosso interior totalmente glorioso; e o dia abençoado, o que nos transformará em homens abençoados e santos; o que não só enfeitará nossa casa, mas limpará nosso coração; o que não só nos dará uma nova habitação e novos relacionamentos, mas também uma nova alma e um novo corpo. A verdade é que os cristãos se queixam com mais freqüência, e mais amargamente, das aflições e das carências em seu interior que das de seu exterior. [...] Portanto, seu desejo é o lugar e a condição em que tenha alívio apropriado a suas necessidades e queixas. E, certamente, isso só existe nesse descanso.

 

VI

Outra regra é esta: a dificuldade em obter demonstra a maravilha; e, certamente, se apenas considerar o quanto custou a Cristo para comprar esse nosso descanso; o quanto custa ao Espírito para trazer o coração do homem a ele; o quanto custa aos ministros persuadir os homens disso; o quanto custa aos cristãos, depois disso tudo, obtê-lo; e o quanto custa a muitos meio-cristãos que, afinal, ficam sem ele, você dirá que aqui isso é difícil e, portanto, demonstra-se assim sua maravilha. [...] É mais fácil queimar cem casas que construir uma; e matar mil homens que dar vida a um. A descida é fácil, a subida nem tanto. [...] Aquele que fez o caminho, e conhece esse caminho melhor que nós, disse-nos que o caminho é estreito e apertado e exige luta; e os que o abraçaram de forma mais verdadeira e vigilante nos dizem que esse caminho passa por muitas tribulações e é preciso enfrentar muitas dificuldades para percorrê-lo. Conclui-se, desse modo, que, com certeza, deve valer alguma coisa algo que custa tudo isso para ser conquistado.

 

VII

Outra regra é esta: é melhor o que não apenas supre as necessidades, mas também as supre abundantemente. Por necessidade queremos dizer, aqui, aquilo sem o que não podemos viver; e por abundância queremos dizer um suprimento mais perfeito, uma abundância mais confortável, não inútil. [...] Aqui não devemos ficar tão cheios, pois nosso vazio deve causar fome; e nossa fome, busca e desejo ardente; e nosso desejo ardente deve testificar de nossa dependência, e ocasionar o receber, e nosso receber ocasionar a retribuição com o agradecimento, e tudo isso faz avançar a glória do Doador. Mas quando formos trazidos para a nascente e estivermos juntos à fonte de água a jorrar, não mais teremos sede, pois não mais ficaremos vazios. Certamente, se essas almas abençoadas não sobejassem em sua ventura, elas nunca sobejariam em louvores. Tais bênçãos, e honras, e glórias, e louvores a Deus jamais acompanhariam as misericórdias comuns. [...] O coração cheio de alegria e a boca cheia de louvores comprovam seu estado fecundo de venturas plenas.

 

VIII

A razão conclui que o melhor está no julgamento dos homens melhores e mais sábios. Embora, é bem verdade, o julgamento dos homens imperfeitos não pode ser a regra perfeita da verdade ou da bondade, ainda que Deus revele esse bem a todos a quem ele o concede e não esconde de seu povo o fim que devem almejar e obter. Se os homens mais santos são os melhores e mais sábios, então a vida deles revela a você o julgamento deles; e o trabalho infatigável e os sofrimentos incessantes deles para alcançar esse descanso mostram a você que eles o aceitam em razão da perfeição da alegria da qual desfrutarão. Se os homens com a mais excelente experiência fossem os sábios, e os que experimentaram esses dois estados, então, aqui embaixo, existe apenas vaidade e vexação, e, lá em cima, felicidade e descanso. [...] Os homens decepcionaramme; mas apelamos para o julgamento inerrante da sabedoria mesma, e até mesmo do sábio e onisciente Deus, se é melhor "um dia nos teus átrios do que mil noutro lugar" (Sl 84.10); e se não é melhor "ficar à porta da casa do meu Deus a habitar nas tendas dos ímpios" (Sl 84.10). [...] Se a sabedoria, portanto, pode passar a sentença, você verá o caminho que a causa seguirá; e "a sabedoria é comprovada pelas obras que a acompanham" (Mt 11.19).

 

IX

Por fim, outra regra da razão é esta: o bem que contém todos os outros tipos de bem em si deve ser o melhor. E como você concebe com a razão que todos os mananciais de bondade, por fim, acabam por se esvaziar? Eles não são provenientes de Deus, de onde, por intermédio de fontes secretas, eles primeiramente procedem? Para onde mais todas as linhas da bondade convergem? E esse fogo não contém todas as chamas, e esse oceano, todas as gotas de água? Certamente, houve tempo em que não havia nada além de Deus e, naquele tempo, todo o bem estava apenas nele. E, até mesmo agora, a essência e a existência da criatura são secundárias, originam-se dele e são impróprias e contingentes em comparação às dele, que é, e era, e sempre será; aquele cujo nome é EU SOU. O que seus olhos e seu coração concebem como desejável que não esteja ali? [...] Você teme perder alguma coisa com a qual agora se deleita ou separar-se dela? O quê? Você teme que sinta falta dela quando chegar ao céu? Você escolheria as gotas de água, se pudesse ter o oceano? Ou a luz da vela, quando tem o sol? Ou a criatura superficial quando tem o Criador perfeito? [...] Não faria reparos no céu, a não ser que Deus tenha nos enganado totalmente; quem ousaria imaginar isso? [...] Todos os homens aventurem-se, fundamentados na palavra e na promessa de Deus. Há um dia de descanso prestes a chegar e [que] pagará totalmente por tudo. Todos os centavos e tostões que você gastou para ele estão contidos, com vantagem infinita, em sua coroa. Quando Alexandre revelou seu tesouro, eles perguntaram-lhe onde esse tesouro estava, e ele apontou para os pobres e disse: "In scriniis" ["Em meu peito"]. E quando saiu em uma expedição auspiciosa, ele distribuiu seu ouro; e quando lhe perguntaram o que guardara para si, respondeu: "Spem majorum et meliorum" ["A esperança das coisas maiores e melhores"]. E quanto mais ousados devemos ser e abrir mão de tudo e apontar para o céu, e dizer, está in scriniis [em meu peito], em nosso tesouro eterno; e pegue essa esperança de coisas maiores e melhores e troque-a por tudo. Mais ainda, perca a si mesmo por Deus, e renuncie a si mesmo, e, nesse dia, encontrará a si mesmo nele. Dê a si mesmo a ele, e ele receberá você nos mesmos termos que Sócrates recebeu seu pupilo, Aeschines, que se entregou a seu mestre, pois não tinha nada mais: Accipio, sede ea lege ut te tibi meliorem reddam quam accepi [Que ele possa retornar você a si mesmo melhor que quando o recebeu] Assim também, esse descanso é o bem que contém to-dos os outros tipos de bem em si.

Portanto, você, de acordo com as regras da razão, vê, de forma geral, a transcendente maravilha da glória dos santos. A seguir, mencionaremos as maravilhas particulares.